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Um presente de Trump para os jornalistas

No dicionário do presidente americano, avaliação negativa quer dizer falsa

Por Adriana Carranca
Atualização:

Um amigo correspondente me falava esta semana sobre a nova onda de otimismo nas redações americanas pós-Trump. “É horrível admitir isso, mas a era Trump é uma boa oportunidade para nós”, ele disse. Como se previa, o novo presidente dos EUA tem sido um fiasco em cumprir a promessa de “fazer a América grande de novo”, mas, aparentemente, está fazendo o jornalismo ser grande de novo. Journalism great again!

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É difícil acreditar nisso, quando jornalistas sofrem uma perseguição sem precedentes. Nos últimos dias, o Google tem alertado alguns repórteres e colunistas americanos sobre a tentativa de hackers, segundo a empresa, “apoiados por (um) governo” de tentar roubar suas senhas e invadir a caixa de e-mails, assim como ocorreu com o partido Democrata durante a campanha à presidência. David Sanger e Paul Krugman, do New York Times, Julia Ioffe, da revista The Atlantic, Brian Stelter, da CNN, Ezra Klein, da Vox, Jonathan Chait, da revista New York, disseram ao site Politico.com ter recebido inúmeras mensagens alertando-os sobre ataques após as eleições.

Parece também um contrassenso que Trump traga qualquer respiro para o jornalismo, quando somos todos sufocados com “fake news” – ou mentiras, uma vez que notícias falsas não são notícias, como já escrevi neste espaço. Ou, segundo interpretação mais recente, tudo aquilo que o presidente americano e sua equipe não gostam de ver exposto sobre ele. “Quaisquer pesquisas negativas são notícias falsas, como as pesquisas da CNN, ABC, NBC nas eleições”, tuitou Trump na segunda-feira, redefinindo a expressão. No dicionário de Trump, negativo quer dizer falso.

Um de seus assessores, Sebastian Gorka, disse nesta semana que a administração continuará usando o termo “notícias falsas” até que a imprensa entenda que “atacar” o presidente é incorreto. Gorka confessa, portanto, tratar-se de uma estratégia política que nada tem a ver com a veracidade do que é dito sobre ele. O presidente e sua equipe têm usado repetidamente a expressão “fake news” para desacreditar reportagens negativas sobre sua administração sem, no entanto, oferecer quaisquer evidências de que sejam de fato falsas.

Na internet, os trumpistas repetem o discurso como robôs programados – que talvez sejam, na internet tudo é possível. Eles têm se dedicado ativamente a rotular qualquer informação negativa sobre o presidente como “fake news” e compartilhar aos milhares o nome do repórter e do jornal com o rótulo – excluída é claro a notícia que, afinal, era verdadeira. Acontece comigo e muitos outros colegas. Como lembrou o Washington Post esta semana, o Brasil oscilou abruptamente à direita e prepara o terreno para eleger um líder como Trump. O deputado federal Jair Bolsonaro, último colocado em eleição para presidente da Câmara, por exemplo, já deu sinais de que pretende pegar carona na vitória surpreendente do magnata. “Vence aquele q (sic) lutou contra ‘tudo e todos’. Em 2018, será o Brasil no mesmo caminho”, tuitou.

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Há algo mais. Quando a elite política com ambições de pleitear o Planalto se vê afundada na lama do maior escândalo de corrupção do país e tenta desesperadamente recorrer a manobras nada ortodoxas para acobertar-se, a verdade se torna um enorme obstáculo e a desmoralização da imprensa, uma estratégia política. É com isso que estamos lidando.

É assustador que o presidente americano minta publicamente usando a conta oficial da Casa Branca, sem punição, legitimando assim as mentiras que dominam o espaço virtual. É uma tragédia que histórias fabricadas rendam milhões de cliques; cliques que atraem propaganda e geram receita para os mentirosos de plantão. Também depender de cliques é um desafio extra para os jornais que buscam a verdade.

Mas há de fato uma boa oportunidade aí. Nunca a sociedade discutiu tanto o jornalismo. As eleições americanas demonstraram a dimensão dos riscos trazidos por informações falsas, distorcidas, manipuladas na era virtual. Muitos se assustaram com a probabilidade de serem enganados. Aos poucos, se dão conta de que a informação – não qualquer informação, mas informação na qual possam confiar para tomar decisões que impactam diretamente suas vidas – é um bem e custa para ser produzido. Isso, por sua vez, tem levado os veículos tradicionais e novos a investir mais em checagem de fatos. Como resultado, New York Times, Washington Post, New Yorker e The Atlantic tiveram um salto em assinaturas pós-Trump.

Na era da mentira, a verdade se tornou um ativo valioso.

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