Um veredicto contra a Rússia

Banda punk Pussy Riot incomoda tanto porque toca no ponto certo: a fusão do poder com a Igreja Ortodoxa no país

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Por VICTOR EROFEYEV e É ESCRITOR RUSSO
Atualização:

ArtigoO chanceler da Rússia, Sergei Lavrov, diz que a comunidade internacional não deve ficar histérica diante da condenação a dois anos de prisão das três jovens integrantes da banda punk Pussy Riot. Alguns países europeus, como Alemanha, França e Áustria, têm leis que determinam penas de prisão para comportamentos extravagantes ofensivos a fiéis, ele disse. Tenho pena do nosso respeitado ministro. Sua tarefa (e não apenas) nesse caso, que corroeu o prestígio internacional da Rússia, é tentar justificar algo injustificável. A Pussy Riot tocou no ponto nevrálgico da moderna Rússia - e por isso o grupo merece elogios, não condenação. A investida foi contra a união ativa entre Igreja e Estado numa única ideologia, as tentativas de criar um modelo de "civilização ortodoxa" na Rússia. Essa união tem por objetivo destruir os movimentos de protesto que se tornaram um importante fenômeno social desde dezembro, descrevendo-os como contra os russos, algo estranho às características particulares da Rússia. Se esse modelo for imposto, um enorme Estado surgirá em que o liberalismo, a democracia e as liberdades individuais serão oficialmente amaldiçoados e suprimidos. A elite governante precisa desse Estado para manter seu poder. Os dirigentes têm razão em temer movimentos de protesto. Aqueles que participaram das enormes concentrações de pessoas em Moscou e em outras cidades estão conscientes de que o movimento se divide em elementos evolucionários e revolucionários. Os primeiros exigem um diálogo racional com as autoridades; os segundos querem que o presidente Vladimir Putin seja levado a julgamento. As autoridades recusaram-se a conversar com os manifestantes que buscam o diálogo, que abrangem uma classe média pró-Europa, de modo que hoje a linha revolucionária predomina. Em suas alegações finais no julgamento, as jovens do grupo - Nadezhda Tolokonnikova, Maria Alyokhina e Yekaterina Samutsevich - exibiram inteligência, erudição e uma competente análise política. Honestamente não esperava discursos tão convincentes dessas artistas radicais. O argumento fundamental foi de que se a Rússia continuar a ser governada da maneira como o Kremlin tem feito, isso será desastroso. Autoridades russas - sobretudo o presidente - têm de encontrar coragem para reavaliar seu comportamento político. Do contrário, a Rússia mergulhará num novo cisma político-religioso. Nos primeiros anos do seu governo, Putin deu um presente involuntário para a Rússia. Procurando estabilizar o país, ofertou às pessoas a liberdade de uma vida privada. Mas somente um político de visão curta não veria que a liberdade privada iria evoluir e a classe média exigiria primeiro liberdade social, depois política. Foi o próprio presidente que deu nascimento aos movimentos de protesto; agora ele tenta apagar o incêndio. Centenas personalidades do mundo cultural - incluindo partidários de Putin - pediram a libertação delas. E a elas se juntaram estrelas internacionais lideradas por Paul McCartney, Madonna e Sting, como também políticos ocidentais. Mas o Kremlin os tratou com hostilidade. Por 40 segundos de uma interpretação punk, cantando Virgem Maria, Mãe de Deus, expulse Putin no altar da catedral de Moscou, as jovens pagarão com a prisão. Está claro que foi um julgamento político. Se as jovens tivessem cantado, "Mãe de Deus, defenda Putin", elas poderiam ser nomeadas para a Duma (Câmara baixa russa). No âmbito da Igreja Ortodoxa, houve uma ruptura entre defensores esclarecidos de uma religião de amor e perdão e os irredutíveis legalistas exigindo punição para os que desobedecem. E estes predominam no momento. No entanto, é mais do que isso. Os líderes da Igreja querem um real controle da sociedade, que instintivamente começa a se defender. Esse é o significado das cartas abertas da intelligentsia russa exigindo que as meninas sejam libertadas. Meu irmão Andrei Erofreyev, curador da controvertida exposição "Arte Proibida", em 2006, foi submetido a uma perseguição similar por ter exposto pinturas que deliberadamente desrespeitavam os valores religiosos. Ele também foi julgado, mas condenado a uma pena mais leve - uma multa - pela autoridade máxima. Isso foi antes dos movimentos de protesto. O veredicto reflete uma crise de governo russo. Em vez de um diálogo com cidadãos esclarecidos, o Kremlin oferece o medo. A Rússia se recusa a ser a um moderno país civilizado. Essa sentença reflete ainda uma crise da Igreja Ortodoxa Russa contemporânea. Na era soviética, a Igreja foi perseguida e apoiada pela intelligentsia. Hoje, ela própria é acusadora. Só um cego não vê que, depois desse julgamento, um grande número de jovens jamais colocará o pé numa igreja. E o veredicto reflete também uma crise de mentalidade. Os pró-Europa apoiam o grupo punk, mas grande parte da população está satisfeita com o castigo público às jovens. Ainda somos um país arcaico, incapaz de criar uma Rússia atrativa. Esse veredicto é um golpe para futuro da Rússia. No momento, adeus Europa! Tenho minha oração pessoal: "Mãe de Deus, dê razão a Putin". O país não pode ficar refém do passado, do absurdo e dos temores dos seus governantes. Fazemos parte da comunidade mundial. Somos um país de escritores liberais, de Pushkin a Chekhov. Temos viajado por toda a Europa nos últimos 20 anos e apreciamos o nível de vida ocidental. "Mãe de Deus, dê razão a Putin". TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO

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