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Uma Cuba revisitada

Viagens de Obama e da representante da UE à ilha assinalam profunda ruptura com a moderna história diplomática de Havana

Por Carlos Malamud e Infolatam
Atualização:

A recente visita de Federica Mogherini, alta representante da União Europeia para Política Externa, e a de Barack Obama a Havana assinalam uma profunda ruptura com a moderna história diplomática de Cuba. 

Se desde a chegada de Hugo Chávez ao poder na Venezuela o regime castrista pôde se reintegrar plenamente às instâncias multilaterais latino-americanas, somente o restabelecimento das relações com os Estados Unidos, em 17 de dezembro de 2014, permitiu a plena normalização de seus vínculos com o mundo.

Moradora de Havana vê imagem do presidente dos EUA, Barack Obama, em noticiário na TV Foto: REUTERS/Alexandre Meneghini

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Esta não é a leitura feita pelas autoridades cubanas ao interpretar a aproximação do governo Obama a Cuba para romper o isolamento ao qual Washington fora submetida por seus colegas da América Latina. Um recente editorial do Granma destacava: “O atual processo com os Estados Unidos têm sido possível também graças à inquebrantável solidariedade internacional, particularmente dos governos e povos latino-americanos e caribenhos, que colocaram os Estados Unidos em uma situação de isolamento insustentável”.

A segunda visita de Mogherini a Havana desde que assumiu o cargo na UE permitiu fechar um acordo de diálogo político e de cooperação, negociado entre as partes desde 2015. Também será o preâmbulo para eliminar definitivamente a política comum que regia a relação europeia com Cuba desde 1996. Durante a entrevista coletiva oferecida por Mogherini e o chanceler cubano, Bruno Rodríguez, a cuidadosa linguagem diplomática empregada por ambos expressou o considerável avanço das relações nos últimos tempos. Como não podia deixar de ser, transpareceram alguns pontos de discordância ainda pendentes na agenda.

A alta representante deixou clara sua posição contrária ao embargo dos EUA contra Cuba e chegou até mesmo a utilizar em duas ocasiões a mítica palavra “bloqueio”. Também repudiou, sem mencioná-la, a Lei Helms-Burton: “A posição da União Europeia é clara: não aceitamos que empresas europeias sofram penalizações”. Ao mesmo tempo, ficaram claras as possibilidades que a cooperação comunitária poderia oferecer a Cuba em sua situação atual, embora, de momento, os desembolsos prometidos por Bruxelas sejam bastante modestos. O próprio tema dos direitos humanos foi discutido com extrema correção política. 

Ninguém quis criar problemas a esse respeito. Para Mogherini, trata-se de continuar, como já se vinha afirmando, um “diálogo que respeita a soberania de ambas as partes, conscientes da universalidade dos direitos humanos”. Por sua vez, Rodríguez enfatizou que a questão deve se “orientar para a cooperação internacional, com pleno reconhecimento do caráter universal, indivisível e não seletivo dos direitos políticos e liberdades civis e dos direitos econômicos, sociais e culturais”. Pequenos detalhes mostram as diversas formas de aproximação ao problema.

Não surpreenderá que a Venezuela tenha sido aparentemente um dos principais pontos de desencontro, tanto pela defesa que o governo de Raúl Castro faz dos ataques de Nicolás Maduro aos direitos políticos da oposição, quanto pela prorrogação do decreto emitido pelo presidente Obama contra determinados militares e políticos chavistas. O chanceler lembrou que “o governo legítimo do presidente Maduro e o povo venezuelano continuarão contando com a irrestrita solidariedade de Cuba”. Também insistiu no “profundo, absoluto e permanente respeito à sua soberania (da Venezuela) e aos assuntos internos que são de sua exclusiva competência”.

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Embora a agenda de Obama em Cuba seja muito mais complexa, o tema venezuelano também marcará uma das maiores divergências com Raúl Castro, pois Washington decidiu não se imiscuir na transição cubana. Isso não implica que o presidente dos EUA possa desinteressar-se do problema das liberdades em Cuba e dos direitos humanos, mas está claro que não constituirá uma limitação que impeça o avanço rumo à normalização da relação bilateral. Está previsto que Obama se encontrará com dirigentes da oposição.

Raúl insistirá mais uma vez na necessidade de abolir o bloqueio, embargo segundo os EUA, e de recuperar Guantánamo, sabedor de que se trata de reivindicações impossíveis de conquistar no futuro imediato. Assim, é extremamente provável que se mantenha o tom de boa sintonia que dominou os encontros anteriores dos dois presidentes, e Obama aproveite a ocasião para anunciar novas medidas que impulsionem os vínculos entre os vizinhos.

Uma das questões mais interessantes será a reação da sociedade cubana à chegada de Obama. Nunca, desde a Revolução Cubana, a ilha recebeu um presidente dos Estados Unidos, o país que durante dezenas de anos encarnou o mal extremo do imperialismo. Como se comportarão os cubanos diante de Obama? Como reagirão os dirigentes cubanos às manifestações espontâneas dos seus cidadãos?

Ao mesmo tempo, outra conduta a ser examinada será a dos diferentes agrupamentos da oposição americana a Obama. Também haverá comportamentos duplos. Por um lado, são muitos os que estão sumamente gratos ao respaldo dos EUA durante todo esse tempo. Por outro, não são poucos os que se sentem traídos por Obama, convencidos de que ele deu muito ao governo de Raúl em troca de quase nada.

Diferentemente da maior parte de seus colegas do hemisfério que aproveitam de sua peregrinação a Havana para ver Fidel Castro, esta visita não entra na agenda do presidente americano. Por tudo isso, e com independência dos gestos de uns e de outros, Cuba já não será a mesma depois da passagem de Obama. / TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA

* Carlos Malamud é professor de história da américa na Universidade Nacional de Educação a Distância, da Espanha. Publicado sob licença da Infolatam

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