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Uma década depois, Mbeki deixa órfã a liderança da África do Sul

Escolha do sucessor do presidente do CNA leva principal partido do país à maior disputa interna de sua história

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Por Cristiano Dias
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Às vésperas de completar uma década no poder, o presidente da África do Sul, Thabo Mbeki, não deixou herdeiros políticos. Apenas isso seria motivo suficiente para uma crise sucessória, mas o cenário se complicou ainda mais quando ele próprio, impedido pela Constituição de concorrer a um terceiro mandato, em 2009, falou em candidatar-se à presidência do Congresso Nacional Africano (CNA), principal partido sul-africano e fio condutor da luta contra o apartheid. Se isso acontecer - e ninguém descarta a possibilidade -, Mbeki passaria a comandar o país dos bastidores, colocando o próximo presidente em uma saia justa. "Ele governaria a África do Sul por controle remoto", disse ao Estado o cientista político sul-africano Hennie van Vuuren, do Instituto de Estudos de Segurança, de Cidade do Cabo. A conta é fácil de entender. Como 90% da população é negra e o CNA foi o catalisador da resistência ao regime branco, o partido tem uma fatia cativa de de pelo menos 65% do eleitorado. Ou seja, ser presidente do CNA e da África do Sul é praticamente a mesma coisa. "A eleição do presidente do CNA é fundamental porque o líder do partido é quem comanda a agenda política da África do Sul", disse VanVuuren. Diante de sua primeira crise política desde a democratização, há 15 anos, o país prendeu a respiração e aguarda ansioso a decisão dos 5 mil delegados do CNA, que se reúnem em dezembro na cidade de Polokwane, no norte do país, para escolher o próximo presidente do partido. "Será um teste, tanto para a democracia sul-africana como para o CNA, que nunca foi tão questionado quanto agora", afirmou Roland Henwood, professor do Centro Internacional de Estudos Políticos da Universidade de Pretória. As primeiras eleições livres na África do Sul aconteceram em 1994, no apagar das luzes do apartheid, o regime de segregação racial que dava à minoria branca o monopólio do poder político e econômico. Na ocasião, o candidato óbvio era Nelson Mandela, eleito para um mandato de cinco anos. O sucessor natural de Mandela foi seu vice-presidente: Thabo Mbeki, outro líder histórico do CNA. A transição foi tranqüila. Já na segunda metade do mandato, Mandela delegou parte das prerrogativas presidenciais a Mbeki e nunca houve dúvidas de que ele seria eleito em 1999. Com a aposentadoria de Mandela, Mbeki tornou-se o principal nome do CNA e foi facilmente reeleito em 2004. Os especialistas são unânimes em apontar o principal legado de Mbeki: a estabilização econômica. Sua política fiscal conservadora domou a inflação e garantiu um sólido crescimento anual de 5%, em 2006. No entanto, por causa do flerte com o neoliberalismo, Mbeki perdeu a confiança de sindicalistas e comunistas, que completam a coalizão do governo. Insatisfeitos, eles partiram para a caçada de um candidato anti-Mbeki. Nessa corrida, o favorito é Jacob Zuma, um populista da velha-guarda. Além dele, os principais adversários de Mbeki são Tokyo Sexwale e Cyril Ramaphosa. Enquanto Sexwale já falou abertamente sobre o assunto, Ramaphosa diz que não é candidato - o que na política pode ser um sinal de que ele é. ARCO-ÍRIS Foi inspirado pela democratização, que o arcebispo Desmond Tutu arquitetou para a África do Sul a metáfora Rainbow Nation ("Nação Arco-Íris"). Com o tempo, o conceito expressou a busca impaciente do CNA pela inclusão dos negros na economia. O processo gerou uma agressiva ação afirmativa que decretou cotas em todos os setores da sociedade. Pela lei, toda empresa com mais de 50 empregados é obrigada a submeter relatórios anuais ao Ministério do Trabalho esmiuçando seus esforços para atingir as metas de integração. Não satisfeito, o governo abriu os cofres para tentar amenizar ainda mais as desigualdades. Desde o fim do apartheid, construiu 2 milhões de casas, levou luz elétrica a 4,5 milhões de sul-africanos e água a outros 11 milhões. ?BLACK DIAMONDS? O CNA também investiu pesado no treinamento e na qualificação de negros para o serviço público. O resultado das políticas de inclusão foi o aumento de negros na classe média. Os black diamonds, como são chamados, já são 2,6 milhões de pessoas. Apesar do esforço, o CNA não conseguiu reduzir o desemprego, que hoje afeta 40% da população negra, e a disparidade econômica entre brancos e negros ainda é abissal. Por isso, nem tudo é rosa na Nação Arco-Íris. Em 15 anos de poder, o CNA colecionou uma série de fracassos, dos quais o mais retumbante é o combate à epidemia da aids, doença que chegou à África do Sul nos anos 90 e foi logo identificada como um problema restrito a gays brancos. O preconceito fez com que as lideranças do partido ignorassem o perigo e hoje o país tem o maior número de infectados do mundo: 5,5 milhões. Mbeki herdou a letargia do governo Mandela, que admitiu tardiamente não ter adotado uma política oficial sobre o assunto por causa de sua incapacidade de falar sobre sexo em público. Até bem pouco tempo, Mbeki sequer reconhecia a relação direta entre HIV e aids e agarrava-se a explicações sociológicas para a pandemia. Com o tempo, o presidente flexibilizou seu pensamento e adotou um discurso mais afinado com a comunidade médica. Ainda assim, sua ministra da Saúde, Manto Tshabalala-Msimang, é até hoje lembrada por declarar que o tratamento à base de alho e beterraba é tão eficaz quanto os medicamentos anti-retrovirais. CRIME Outro fiasco do CNA é a criminalidade. Todos os anos, uma média de 28 mil pessoas são assassinadas na África do Sul. São 59 homicídios por cada 100 mil habitantes - o dobro da taxa brasileira. "Alguns desses problemas, como a violência, já existiam antes do CNA assumir. Mesmo assim, são questões que o partido não conseguiu resolver", disse Henwood. Para atacar muitas dessas questões, o CNA pretende usar a Copa do Mundo de 2010. A herança do mundial, de acordo com Joel Netshitenzhe, porta-voz do governo, será uma sensível melhoria na infra-estrutura. Alguns setores, como o turismo, já sentem o reflexo imediato dos US$ 50 bilhões de investimentos liberados para a Copa. Em 2006, 7,6 milhões de visitantes estrangeiros chegaram ao país - no mesmo período, o Brasil recebeu apenas 5 milhões de turistas. LEALDADE Por fim, o último nó da administração Mbeki é o Zimbábue. Apesar de ter tido papel fundamental na intermediação da paz em vários conflitos no continente - como no Burundi, em Serra Leoa e na República Democrática do Congo -, a fidelidade da África do Sul ao ditador zimbabuano, Robert Mugabe, abalou a boa reputação da política externa de Mbeki. A "diplomacia silenciosa", como foi batizado o tratamento dado ao governo vizinho, é um desastre. A explicação para o desleixo com o Zimbábue é a lealdade, conceito sobrevalorizado pelos militantes do CNA nos anos de luta contra o apartheid. Mandela adotou a idéia, muito cultuada na relação pessoal entre os membros do partido, e transformou-a em bandeira da política externa sul-africana. Dessa forma, apesar da defesa intransigente dos direitos humanos, seu governo manteve-se fiel a países que apoiaram a luta contra o regime branco, aproximando-se de autocratas como o presidente cubano Fidel Castro, o líbio Muamar Kadafi e o então presidente sírio Hafez Assad. Assim, a história se repete. Mugabe foi um fiel colaborador do CNA nos anos 80 e, até hoje, o partido é grato a ele. Apesar das flagrantes violações de direitos humanos, das denúncias de tortura e de assassinatos, Mbeki insiste na conciliação entre a oposição e o governo do Zimbábue. "A política externa da África do Sul é baseada no idealismo e na experiência do exílio dos líderes do CNA", afirmou o professor Henwood. "Mas já existe hoje uma crescente percepção de que os interesses do país não podem mais ser reféns dessas duas coisas." Enquanto o problema do Zimbábue não é resolvido, milhões de zimbabuanos cruzam todos os anos o Rio Limpopo, o que faz da fronteira do Zimbábue com a África do Sul a mais porosa do mundo. A maioria dos refugiados morre afogada, levada pela violência da correnteza, ou é comida por crocodilos. Os que conseguem atravessar se juntam aos 3,5 milhões de zimbabuanos que vivem ilegalmente na África do Sul - um número de refugiados maior do que o de Darfur, no Sudão.

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