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Uma guerra mais bem servida fria

Por Nicholas Thompson
Atualização:

Há 60 anos este mês, escrevendo sob o pseudônimo de X, George Kennan supostamente estabeleceu a política externa de Guerra Fria dos EUA. O ensaio de Kennan é considerado, com freqüência, o artigo mais influente na história da política externa americana, mas nem Harry Truman nem qualquer outro presidente depois dele realmente seguiram as recomendações de X. A "contenção", palavra que o ensaio introduziu, foi aplicada de uma maneira belicosa que contrariava a intenção de Kennan. Apesar de Truman ter se esquivado do conselho de X, George W. Bush devia segui-lo. Kennan estava errado sobre como poderíamos ganhar a Guerra Fria, mas certo sobre como travar a guerra ao terrorismo. No número de julho de 1947 de Foreign Affairs, Kennan, então o chefe de planejamento político do Departamento de Estado, deu um nome à estratégia americana, mas não muito mais que isso. Ele argumentou que não precisávamos derrotar de fato a União Soviética, apenas durar mais que ela. O comunismo trazia em si "as sementes da própria decadência". Os EUA deveriam abster-se de provocar Moscou, fosse pelo confronto, fosse por histrionismos. A paciência levaria ao sucesso. A influência do artigo resultou de um mal-entendido. Kennan não deixou claro se pretendia que a contenção fosse uma estratégia principalmente política ou militar. Apesar da ambigüidade do artigo, todos supuseram a última. O colunista mais importante da época, Walter Lippmann, escreveu 14 ensaios seguidos sobre o artigo de X (depois reunidos num livro que cunhou a expressão com seu título, "A Guerra Fria") declarando que contenção era uma doutrina militar - e uma doutrina ruim, aliás. Mas, numa carta a Lippmann que jamais enviou, Kennan explicou que não quisera dizer contenção com canhões. Ele não queria que as Forças Armadas americanas interviessem em países onde os soviéticos estavam se metendo, mas não tinham obtido o controle, como Grécia, Irã e Turquia. Os soviéticos estão fazendo "primeiro e sobretudo um ataque político", escreveu Kennan. "Suas cabeças-de-ponte são os comunistas locais. E a arma que melhor pode vencê-los é o vigor e solidez da vida política nos países vítimas." As autoridades políticas americanas viram a contenção em termos militares. Nós logo aumentamos nossas forças para defender a Europa Ocidental, criamos a Otan e nos engajamos numa enorme corrida armamentista. Contenção se traduziria em soldados no Vietnã e milhares de armas nucleares apontadas para a União Soviética. Kennan se opôs a cada uma dessas ações. Considerado por muito tempo o homem que definiu nossas políticas de Guerra Fria, Kennan foi, provavelmente, o mais consistente e persistente crítico da contenção. Ele passou anos negando a paternidade da doutrina que todos lhe atribuíam. Hoje, estamos diante de desafios imensamente distintos daqueles que se apresentavam à nação logo após a 2ª Guerra. Nosso inimigo é disperso; há uma ameaça constante de ataques suicidas; armas nucleares podem ser escondidas em malas em vez de largadas de aviões. Mesmo assim, no que trata de estratégia abrangente, a política desejada, mas nunca executada, de Kennan de 60 anos atrás oferece um saber profundo para hoje. O insight de Kennan era que uma luta complexa e demorada não era melhor julgada em termos de vencer ou perder. O comunismo não era algo que poderíamos vencer de imediato. O mesmo vale para a Al-Qaeda, um movimento que, como o comunismo soviético, oferece opressão e pobreza a seus súditos. O tempo corre a nosso favor - particularmente se agirmos de maneira a não inflamar o orgulho e a ira de nossos inimigos e render-lhes novos recrutas. A insistência de Kennan numa estratégia política e não militar faz mais sentido agora do que quando publicou seu ensaio. Aplicado hoje, esse conselho implicaria gastar mais tempo e dinheiro fortalecendo nossos aliados muçulmanos. O Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais relata que somente US$ 900 milhões dos US$ 10 bilhões que demos ao Paquistão desde 2002 foram para saúde, educação e promoção da democracia. A maior parte do restante foi para os militares. O governo Bush deu passos recentes para mudar essa proporção. Mas Kennan, um dos autores do Plano Marshall, teria gostado que os números fossem mais próximos do inverso. Uma versão para o século 21 da visão sobre contenção de X envolveria o fechamento da prisão de Guantánamo, a renúncia inequívoca à tortura e o abandono da noção de que nossas normas legais e morais não valem para a luta atual. Kennan acreditava que dávamos uma vitória de propaganda a nossos adversários toda vez que agíamos de modo contrário a nossos ideais. "Para evitar a destruição", concluiu Kennan no artigo de X, "os EUA só precisam ficar à altura de suas melhores tradições e provar-se merecedores de preservação como uma grande nação." Não podemos saber com certeza como a versão de contenção inteiramente política que ele recomendava teria funcionado na Guerra Fria. Mas sabemos que uma política externa militante não acarretou uma guerra nuclear e ajudou, no fim das contas, a provocar o colapso do comunismo soviético. Sabemos também que uma política ofensiva vigorosa ainda não se provou bem-sucedida contra a Al-Qaeda. Kennan morreu dois anos atrás, aos 101 anos. Um de seus últimos pronunciamentos públicos foi uma crítica, em 2002, à iminente invasão do Iraque. A guerra, disse ele, era imprevisível demais, e esta não valia a pena. Como ele escreveu a Lippmann seis décadas atrás: "Tratemos de achar saúde, vigor e esperança, e a porção doente da Terra cairá por seus próprios feitos. Para isso, não precisamos de planos estratégicos agressivos, de provocação de hostilidades militares, de confrontos." TRADUÇÃO DE CELSO MAURO PACIORNIK * Nicholas Thompson, editor sênior da revista ?Wired?, está escrevendo um livro sobre George Kennan. Artigo escrito para ?The New York Times?

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