Uma nova Guerra Fria

Culpa por tensão internacional é do Ocidente, por ter cantado vitória após fim da URSS

PUBLICIDADE

Por Mikhai Gorbachev
Atualização:

Agora que 2014 chega ao fim, está claro que as estruturas políticas europeias e internacionais que existem desde 1989 falharam no teste do tempo. Aliás, o mundo não testemunhava um ambiente tão tenso e frágil desde o fim da Guerra Fria, com derramamento de sangue na Europa e no Oriente Médio contra o pano de fundo de uma ruptura do diálogo entre grandes potências. O mundo parece à beira da 2.ª Guerra Fria. Alguns chegam a dizer que ela já começou. Por outro lado, o principal organismo internacional - o Conselho de Segurança da ONU - praticamente não está desempenhando nenhum papel ou tomando ações concretas para sustar os conflitos e as matanças. Por que ele não agiu com determinação para avaliar a situação e desenvolver um programa de ação conjunta? Uma primeira razão, acredito, é que a confiança criada com trabalho duro e esforço mútuo para encerrar a Guerra Fria desmoronou. Sem essa confiança, as relações internacionais pacíficas no mundo globalizado de hoje são inconcebíveis. Mas essa confiança não foi minada ontem apenas; isso já vinha ocorrendo há muito tempo. As raízes da situação atual remontam aos acontecimentos dos anos 1990. O fim da Guerra Fria devia marcar o início de um caminho para uma nova Europa e uma ordem mundial mais segura. Mas em vez de construir novas instituições de segurança europeias e perseguir a desmilitarização da Europa - como prometia a Declaração de Londres de 1990 da Otan - o Ocidente, particularmente os EUA, cantou vitória. A euforia e o triunfalismo subiram à cabeça dos líderes ocidentais. Aproveitando as fraquezas da Rússia e a falta de um contrapeso, eles se recusaram a fazer advertências contra um monopólio da liderança global. Os acontecimentos dos últimos meses são consequências da miopia de buscar impor a própria vontade desconsiderando os interesses dos parceiros. Uma pequena lista destes faits accomplis incluiria a ampliação da Otan, a guerra na Iugoslávia (particularmente Kosovo), planos de defesa antimíssil, Iraque, Líbia e Síria. Por consequência, o que era uma bolha se tornou uma ferida supurando. Efeito colateral. E a Europa é a que mais sofre. Em vez de liderar as mudanças num mundo em globalização, o continente se transformou numa arena de sublevações políticas, competição por esferas de influência e conflitos militares. A consequência inevitável é que a Europa está se enfraquecendo numa época em que outros centros de poder e influência se fortalecem. Se isso continuar, a Europa perderá sua influência nos assuntos mundiais e se tornará gradualmente irrelevante. Felizmente, a experiência dos anos 1980 sugere outro caminho. A situação internacional na época não era menos perigosa do que é hoje. Mas nós conseguimos melhorá-la - não só normalizando relações, mas pondo fim à própria Guerra Fria. Isso foi alcançado principalmente pelo diálogo. Mas a chave do diálogo é vontade política e estabelecer as prioridades certas. Hoje, a principal prioridade deveria ser o próprio diálogo: uma renovação da capacidade de interagir, ouvir e escutar o outro. Sinais promissores estão surgindo por esforços iniciais que renderam resultados apenas frágeis e modestos: o acordo de Minsk para um cessar-fogo e desengajamento militar na Ucrânia; o acordo de gás trilateral firmado por Rússia, Ucrânia e a União Europeia; e uma sustação da escalada de sanções mútuas. Precisamos continuar a sair de polêmicas e acusações mútuas para uma busca de pontos de convergência e um levantamento gradual das sanções que estão causando prejuízos a ambos os lados. Como um primeiro passo, as chamadas sanções pessoais que afetam figuras políticas e parlamentares devem ser levantadas para que eles possam se juntar ao processo da busca de soluções mutuamente aceitáveis. Uma área de interação poderia ser ajudar a Ucrânia a superar as consequências da guerra fratricida e reconstruir as regiões afetadas. O mesmo vale para os desafios globais e a segurança pan-europeia. Os principais problemas globais de hoje - terrorismo e extremismo, pobreza e desigualdade, mudança climática, migração e epidemias - estão se agravando dia a dia. E, por diferentes que sejam, eles têm uma característica comum: nenhum deles tem uma solução militar. No entanto, os mecanismos políticos para resolver esses problemas ou inexistem ou são disfuncionais apesar de a persistente crise global dever nos persuadir a buscar - sem demora - um novo modelo capaz de assegurar a sustentabilidade política, econômica e ambiental. Quanto à segurança da Europa, somente uma solução pan-europeia é viável. Aliás, as tentativas de enfrentar o problema ampliando a Otan ou com uma política de defesa da UE foram contraproducentes. Precisamos de instituições mais inclusivas e mecanismos que proporcionem proteções e garantias para todos. A Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE), na qual se depositavam tantas esperanças, até agora não se mostrou à altura da tarefa. Isso não significa que a OSCE deva ser substituída por algo novo - especialmente porque ela agora assumiu funções de controle importantes na Ucrânia. Mas eu diria que a OSCE é um edifício que requer grandes reparos e alguma construção nova. Anos atrás, o ex-ministro alemão das Relações Exteriores, Hans Dietrich Genscher, o ex-Consultor de Segurança Nacional americano Brent Scowcroft e outras personalidades políticas propuseram a criação de um Conselho de Segurança, ou Diretoria, para a Europa. Concordo com sua abordagem. Na mesma linha, durante a presidência do primeiro-ministro russo, Dmitri Medvedev, ele propôs a criação de um mecanismo europeu de consultas preventivas diplomáticas e obrigatórias na eventualidade de uma ameaça à segurança de qualquer Estado. Se tal mecanismo tivesse sido criado, os piores eventos da Ucrânia poderiam ter sido evitados. Os líderes europeus certamente são culpados por terem engavetados essas e outras "ideias europeias". Mas a culpa deve ser compartilhada também por toda a classe política europeia, as instituições da sociedade civil e a mídia. Embora eu seja, por natureza, um otimista, tenho de admitir que é muito difícil não ser pessimista neste encerramento de 2014. Mas não devemos nos entregar ao pânico e ao desespero, ou nos deixar ser atraídos para o vórtice da inércia negativa. A experiência amarga dos últimos meses precisa ser transformada na vontade de nos reengajarmos no diálogo e na cooperação. Esse é o meu apelo a nossos líderes, e a todos nós, para 2015: vamos pensar, propor e agir juntos. / TRADUÇÃO DE CELSO PACIORNIK * É prêmio Nobel da Paz e último presidente da União Soviética, fundou em 1993 a Cruz Verde Internacional, com sede em Genebra, uma organização não governamental empenhada em questões de segurança, pobreza e degradação ambiental

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.