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Cenário: Uruguai torna-se 'laboratório' para a América Latina

A grande responsabilidade do Uruguai é mostrar ao mundo que este sistema de liberdade, mas com regras, funciona melhor do que a proibição

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Por Redação
Atualização:

MONTEVIDÉU – As regras sob certo aspecto “cortam o barato”. Os usuários têm de se registrar em um órgão do governo. As máquinas scaneiam as digitais do comprador a cada compra feita e as cotas são limitadas para prevenir excessos. Mas com a entrada em vigor na quarta-feira da lei na sua íntegra liberando a maconha, basta uma simples ida à farmácia para se abastecer.

Enquanto alguns Estados americanos legalizam a maconha e governos no hemisfério reavaliam sua luta contra as drogas, o Uruguai dá um passo à frente importante. É o primeiro país no mundo a legalizar totalmente a produção e a venda da maconha para uso recreativo.

Clientes enrolam cigarro de maconha apóscomprá-lo em farmácia no centro de Montevideu. Foto: Tiago Queiroz/Estadão

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“A grande responsabilidade do Uruguai é mostrar ao mundo que este sistema de liberdade, mas com regras, funciona melhor do que a proibição”, disse Eduardo Blasina, fundador do Museu da Maconha de Montevidéu.

A entrada em vigor da lei ocorre no momento em que eleitores, legisladores e tribunais em todas as Américas se inclinam cada vez mais no sentido de uma regulamentação da droga e o fim da sua proibição. Os defensores da mudança no pequeno país latino-americano, onde a taxa de crimes é baixa, o padrão de vida é alto e cuja política é estável, é agora o laboratório ideal para se saber como será o futuro da política no caso das drogas.

“Isso decorre de um movimento crescente de líderes latino-americanos na busca de alternativas par a guerra contra as drogas”, afirmou Hannah Hetzer, analista da Drug Policy Alliance, que defende a descriminalização. “Muito importante neste caso é um debate sobre a necessidade de alternativas, e a liberação pelo Uruguai é uma proposta concreta de uma política concreta”.

Mas a lei causou polêmica entre muitos uruguaios. A parte mais controvertida dela – a criação de um sistema de controle pelo Estado da produção e venda da maconha - levou anos para ser solucionada. A venda de maconha nas farmácias teve início na quarta-feira.

Autoridades do governo temiam que liberar a produção e venda da maconha, como em Amsterdã, transformaria o Uruguai num pária para os países vizinhos cautelosos quanto a uma liberação da droga. Assim elas criaram um sistema de registro oneroso, procurando eliminar a possibilidade de vender o país como meca turística para viciados. De acordo com a lei, somente cidadãos uruguaios e residentes permanentes podem comprar ou plantar maconha.

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O governo também limitou a quantidade por semana de maconha que uma pessoa pode comprar. E para fazer frente aos traficantes, estabeleceu um preço mais baixo do que os oferecidos no mercado negro, cobrando cerca de US$ 13 por 10 gramas, suficientes para 15 baseados. A lei também proíbe propaganda e deve utilizar uma porcentagem da receita gerada com a venda no pagamento de tratamentos contra a dependência e em campanhas públicas alertando para os riscos do uso da droga.

“São medidas que visam ajudar os usuários, mas não incentivam os que não consomem drogas”, disse Alejandro Antalich, vice-presidente do Centro de Farmácias do Uruguai”, entidade que representa o setor. “Se funcionar como planejado, outros países podeam adotar o sistema como modelo.”

Um dos principais articuladores da legalização da maconha no Uruguai foi Sebastián Sabini, deputado que apresentou o projeto em 2011. Ele é membro da Frente Ampla, coalizão de esquerda, que está no poder desde 2004. Sabini, de 36 anos, que diz ser um fumante ocasional de maconha, qualificou a lei como uma questão de justiça social. “Os que mais sofrem com as políticas referentes às drogas são os pobres. Os únicos a serem presos são os pobres”, disse.

Este argumento foi repetido pelo presidente na época, José Mujica, antigo líder guerrilheiro e prisioneiro político que defendeu outras políticas também polêmicas, incluindo a legalização do casamento de pessoas do mesmo sexo e a descriminalização do aborto. Para Mujica, a legalização da produção e venda da maconha acabaria com a atividade dos traficantes.

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“Pior do que a dependência da droga é o tráfico”, disse Mujica em uma entrevista em 2014 à rede de notícias espanhola laSexta.

A lei foi implementada em etapas. Após sua aprovação, em dezembro de 2013, os usuários que se registraram em um órgão do governo foram autorizados a plantar no máximo seis pés de maconha em casa para uso pessoal. Até agora 7 mil pessoas fizeram tal registro. A lei também permitiu a criação de “clubes” de no máximo 45 pessoas autorizadas a plantar 99 pés para uso pessoal dos membros.

No caso das vendas no comércio, alguns executivos de farmácias propuseram administrar a distribuição, observando que já possuíam os mecanismos necessários para administrar a venda de medicamentos controlados. Embora não seja algo relevante no caso da venda de maconha para uso recreativo, a proposta se ajusta ao objetivo do governo de criar uma estrutura que permita, mas que não promova, o uso da droga.

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Mas nem todos os farmacêuticos concordam. Juan José Rodríguez, que tem uma farmácia em Montevidéu há 17 anos, disse que a lei coloca o Uruguai num caminho perigoso. “Se você legaliza a maconha terá então de legalizar a cocaína, o ecstasy?, indagou. Desde a aprovação da lei, disse, ele sente o cheiro de maconha por todo lugar em que passa.

“Antes, as pessoas fumavam discretamente porque era algo que a sociedade desaprovava, não era permitido e elas sabiam que estavam fazendo algo ilegal. Agora fumam com a maior tranquilidade”, afirmou.

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É assim que deve ser, afirmou Martín Morón, trombonista do La Abuela Coca, grupo de música famoso no Uruguai, que já se registrou para produzir maconha e é um consumidor habitual. Durante sua juventude, para comprar maconha ele tinha de ir a áreas suspeitas da cidade, inseguras e impróprias. Isso mudou drasticamente, disse ele. Quando um vizinho adolescente roubou pés de maconha que ele plantara na varanda, Morón fez o que poucos plantadores de maconha poderiam fazer no passado: chamar a polícia.

“Depois de anos e anos às ocultas, não posso acreditar que agora deixei a polícia entrar em minha casa e inspecionar o que restou da minha plantação”, disse, rindo.

Durante os anos em que o Uruguai começou a implementar, por etapas, sua legislação sobre a maconha, os defensores da legalização da droga aumentaram em outros países do hemisfério.

O debate começou a mudar quando ex-presidentes latino-americanos passaram a argumentar que a guerra contra as drogas liderada por Washington havia fracassado. Segundo eles, a comunidade internacional tinha de permitir que os países adotassem políticas nessa área que respondessem aos desafios de cada um deles, enfatizando o tratamento contra a dependência e reduzindo as prisões em massa. Quando alguns Estados americanos legalizaram a maconha, os presidentes latino-americanos se sentiram encorajados a discutir uma lei a respeito.

“Como explicar para um camponês colombiano de uma comunidade rural que ele será processado por plantar maconha, ao passo que um jovem empresário do Colorado vê seus negócios com maconha para uso recreativo legal em forte expansão?”, disse o presidente Juan Manuel Santos em um artigo publicado no The Guardian em 2016.

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Em 2013, México, Colômbia e Guatemala convocaram uma sessão especial na ONU cujo objetivo era flexibilizar os acordos internacionais sobre políticas relativas a narcóticos. Como a sessão, realizada em 2016, não avançou muito, vários países começaram a adotar medidas nessa área por conta própria.

Nos últimos anos a Colômbia autorizou a criação de um setor de maconha para fins medicinais. Em 2015, a Suprema Corte do México decidiu que os indivíduos tinham o direito de plantar maconha para uso pessoal. Projetos de lei relativos à maconha para fim medicinal foram debatidos na Argentina e na Costa Rica este ano. A Jamaica legalizou a maconha para uso científico, religioso e médico em 2015. O Canadá deverá autorizar a venda de maconha para uso recreativo em 2018.

Com o apoio à descriminalização aumentando nos EUA e na região, o governo de Barack Obama adotou um enfoque relativamente tolerante. Mas agora o governo de Donald Trump ainda precisa estabelecer uma política externa ampla com relação aos narcóticos, mas os defensores de uma legalização da droga estão cautelosos.

“Não vemos defensores da nossa causa”, disse Hanna Hetzer. “Estamos muito preocupados de que todo o ímpeto envolvendo a reforma da justiça criminal e os esforços para reduzir as prisões em massa estão diminuindo.”

Mas hoje as posições de Washington nesse campo parecem ter menos peso do que nunca, mesmo em países que são tradicionalmente aliados.

“Hoje, o que os EUA dizem tem muito menos importância”, disse Blasina, o fundador do museu da maconha. “Não consideramos seu presidente um indivíduo sensato cuja opinião tenha algum valor”. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO