Variantes do vírus desafiam as fronteiras abertas na Europa

Temendo as novas cepas altamente contagiosas - identificadas primeiramente no Reino Unido e na África do Sul -, Alemanha e Bélgica introduziram novas restrições na semana passada, aderindo a medidas que já tinham sido tomadas por outros países

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Por Matina Stevis-Gridneff
Atualização:

BRUXELAS — Enquanto novas variantes do coronavírus se espalham rapidamente, países tomam providências para reintroduzir controles nas fronteiras, prática que se tornou o novo normal na Europa durante a pandemia e está fragmentando o território que já foi a maior área de livre trânsito no mundo.

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Temendo as novas variantes altamente contagiosas - identificadas primeiramente no Reino Unido e na África do Sul -, Alemanha e Bélgica introduziram novas restrições nas fronteiras na semana passada, aderindo a medidas que já tinham sido tomadas por outros países.

A União Europeia considera o livre trânsito um pilar fundamental para o aprofundamento da integração do continente, mas, após uma década em que o terrorismo e a crise migratória testaram esse compromisso, o fácil recurso de controlar fronteiras está colocando essa política sob nova pressão.

A Comissão Europeia, corpo executivo da UE, tenta dissuadir países da ideia de limitar o livre trânsito desde março passado, após a maioria deles ter imposto restrições no início da crise. O resultado é uma colcha de retalhos de regras de fronteira que mudam constantemente, o que tem semeado o caos, ao passo que nem sempre evita a disseminação do vírus.

Dinamarca anunciou no dia 19 de fevereiro o fechamento de diversas passagens na fronteira com a Alemanha devido ao coronavírus Foto: Axel Heimken/AFP

“Na primavera do ano passado, tivemos 17 Estados-membros diferentes introduzindo restrições nas fronteiras, e a lição que aprendemos naquele momento foi que isso não conteve o vírus, mas prejudicou incrivelmente o mercado comum e causou enormes problemas”, afirmou à imprensa a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, na semana passada. “O vírus nos ensinou que fechar fronteiras não impede a passagem (do vírus).”

Mas muitos países parecem sentir que é irresistível reassumir o controle das fronteiras. A fala de Von der Leyen, e uma sugestão por parte dos assessores de comunicação da comissão de que novas restrições deveriam ser revertidas, foi rechaçada pela Alemanha, que ecoou a nova normalidade entre países da UE no contexto do coronavírus: nossas fronteiras, nossa decisão.

“Estamos combatendo a mutação do vírus nas fronteiras com República Checa e Áustria”, afirmou o ministro alemão do interior, Horst Seehofer, ao tabloide Bild. A comissão “deveria nos apoiar, e não mandar seus assessores de comunicação atrás de nós com conselhos furados”, disparou.

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O sistema de trânsito de pessoas e mercadorias sem fronteiras é conhecido no jargão europeu como Schengen, em homenagem à cidade em Luxemburgo onde o tratado estabelecendo esses princípios foi assinado, em 1985, pelos cinco países do centro do que é hoje a União Europeia.

Hoje, o Espaço Schengen abrange 22 dos 27 Estados-membros da UE, assim como quatro vizinhos (Islândia, Lichtenstein, Noruega e Suíça), onde os viajantes, por princípio, atravessam fronteiras livremente, sem serem submetidos a inspeções ou outros procedimentos.

“Minha maior preocupação — e eu lido com o Acordo de Schengen há muitos anos — é que o Espaço Schengen esteja em grave perigo”, afirmou Tanja Fajon, deputada eslovena no Parlamento Europeu e líder da comissão de análise do Acordo de Schengen do organismo.

Ao longo da década anterior, ataques terroristas em países da UE e a exploração das preconizadas liberdades de Schengen por parte de militantes que pulavam de país em país deixaram evidente que a cooperação entre as forças de segurança e o compartilhamento de informações de inteligência não acompanharam o ritmo da abertura das fronteiras dos países europeus.

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Entre 2015 e 2016, a chegada de mais de 1 milhão de refugiados que fugiram da guerra na Síria deu um golpe decisivo no Acordo de Schengen. Muitos países-membros, evitando compartilhar o fardo, reforçaram suas fronteiras, isolando a si mesmos e usando países dos limites do bloco europeu, como Grécia e Itália, como zona de amortecimento.

O impacto da crise dos refugiados sírios marcou uma transformação que abalou a política europeia de fronteiras. A ausência de fronteiras, no passado um ideal romântico de uma Europa unida, próspera e livre, foi ceifada pela direita e pela extrema direita e qualificada, em vez disso, como uma ameaça.

Pouco depois, até políticos moderados começaram a considerar as fronteiras internas da Europa desejáveis, após décadas trabalhando para desmantelá-las.

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“O livre trânsito é um símbolo da integração europeia, o resultado mais tangível dessa integração, algo que as pessoas sentem na realidade”, afirmou Tanja.

“Agora não é somente a pandemia que o ameaça — o Espaço Schengen está em crise desde 2015, quando começamos a ver controles internos de fronteira usados para proteger interesses mesquinhos relacionados a refugiados, sem nenhum benefício real”, acrescentou ela.

A aparentemente incontrolável disseminação do coronavírus está dando um terceiro golpe no sonho de fronteiras abertas na Europa.

“Schengen não é um sistema muito resiliente diante de crises”, afirmou Marie De Somer, especialista do European Policy Center, instituto de pesquisa com sede em Bruxelas. “Quando o clima está ameno, ele funciona, mas, assim que ficamos sob pressão, vemos falhas e lacunas em seu funcionamento, e a covid é um excelente exemplo disso.”

Países que pertencem ao Espaço Schengen podem por direito expresso reintroduzir fiscalizações em suas fronteiras, mas precisam superar alguns obstáculos legais para issoe não devem manter as medidas no longo prazo.

Um fator que pode ajudar a manter as fronteiras abertas é o enorme e imediato impacto econômico sentido atualmente como resultado até de pequenas restrições — um reflexo de como o funcionamento cotidiano do bloco tem sido construído com base na ausência de fronteiras há décadas.

Desde 14 de fevereiro, as únicas pessoas autorizadas a entrar na Alemanha pela fronteira com a República Checa ou com a região do Tirol, na Áustria, onde casos de covid-19 provocados pela variante de coronavírus originada no Reino Unido estão aumentando, são alemães que vivem na Alemanha, transportadores de cargas ou trabalhadoresem serviços essenciais no país. Todos são obrigados a se registrar e mostrar um teste negativo de coronavírus antes de serem admitidos no país.

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Mas milhares de pessoas na Áustria e na República Checa viajam diariamente para trabalhar na Alemanha e, após as novas restrições entrarem em prática, longas filas começaram a se formar nas fronteiras. Passada uma semana, grupos de empresários escreveram cartas desesperadas às autoridades alemãs, pedindo que o país alivie ou elimine as restrições e alertando que a aparentemente limitada e específica manobra já havia provocado caos nas redes de fornecimento.

“As medidas têm implicações bastante sérias para toda Áustria e, portanto, contradizem claramente a ‘lição aprendida’ na primavera passada”, afirmou Alexander Schallenberg, ministro das relações exteriores da Áustria.

Ainda assim, mesmo em um futuro próximo imaginário, em que a maioria dos europeus tenha sido vacinada e o coronavírus finalmente esteja sob controle, o futuro do Espaço Schengen será provavelmente contestado.

A luta pelo futuro do Espaço Schengen continua, afirmou Tanja, a deputada do Parlamento Europeu, enquanto a Comissão Europeia se prepara para apresentar um estudo de estratégia a respeito do assunto este ano.

“A questão é: que tipo de Schengen teremos?”, afirmou Tanja. “Câmeras escondidas nas fronteiras registrando placas de automóveis ou outras ferramentas tecnológicas questionáveis?”

Ainda assim, Marie acha que o livre trânsito tem importantes aliados a longo prazo: os jovens do continente.

“Os jovens estão dizendo que, na crise da covid, experimentaram pela primeira vez como é viver em uma Europa com fronteiras”, afirmou ela. “Isso fez com ele eles valorizassem a ausência de fronteiras.” / Tradução de Augusto Calil

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