Vício flagela refugiados em Cabul

Afegãos que fugiram da guerra voltam agora para casa doentes e miseráveis

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Por Adriana Carranca
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Crianças jogam bola no campo de refugiados de Shas Shahid. Foto: Adriana Carranca/AE   CABUL - O assentamento de Shah Shahid, no sudeste deCabul, é um emaranhado de tendas feitas com pedaços de pano, tapetes velhos e lençóis remendados sobre hastes de bambu. O lixo se acumula na terra seca, cortada por um rastro de esgoto que escorre a céu aberto, exalando um cheiro perturbador. As 50 famílias afegãs que vivem ali - cerca de 400 pessoas - vêm de Jalozai, na paquistanesa Província da Fronteira Noroeste, o maior campo de refugiados afegãos até ser fechado, em 2008.   Assentamentos precários como Shah Shahid proliferaram-se pela periferia de Cabul com os 5 milhões de refugiados afegãos que retornaram ao país desde a invasão dos EUA, em 2001 - 300 mil somente em 2008. Quando chegam, já não encontram suas casas, estão doentes, com fome, desempregados e sem nada.   Milhares retornaram viciados em heroína, abundante nas fronteiras do Paquistão e do Irã, por onde a droga é escoada para EUA, Europa e Ásia, e onde se concentraram os campos nos últimos 30 anos de conflitos.   Hagat Gul, de 21 anos, conta que, na fronteira com o Irã, afegãos ilegais e miseráveis são recrutados para serviços pesados. Gul trabalhava 16 horas por dia em uma construção. O mesmo atravessador lhe conseguiu trabalho e o convenceu a usar heroína "para diminuir o cansaço e dormir melhor". Seu rendimento aumentou e o ganho diário de 200 afeganes (U$ 4) saltou para 750 afeganes (U$ 15). "De repente eu não sentia o peso do trabalho", diz Gul. Até o vício consumir todo o seu salário.   Foi a morte do irmão caçula, em um acidente de carro há seis meses, que o fez procurar ajuda - o menino precisou de uma transfusão, mas o sangue de Gul, único compatível, continha droga e não podia ser doado. Ele tinha os pés descalços, roupas sujas e os olhos perdidos quando o encontramos na porta do primeiro Centro para Tratamento de Drogas de Cabul.   "Só quando os refugiados começaram a voltar, vimos o tamanho do problema", diz o médico Wahedullah Koshar que recebeu mais de 5 mil viciados no centro em Cabul, desde 2001. Deles ouviu histórias chocantes, como o paciente que deu a mulher a um traficante por 3 mil afeganes (U$ 60) e outro que vendeu o filho por 12 mil afeganes (U$ 240). "A heroína é devastadora."   Sanga Amaj, aberto em junho pelo Serviço Social pelas Mulheres Afegãs, é o primeiro centro feminino para tratamento de drogas do país. Financiado pelos EUA e o Ministério de Combate ao Narcotráfico atendeu cerca de 500 mulheres, recrutadas em assentamentos como o Shah Sharhid. Muitas usam ópio como remédio para aliviar dores extremas. Os maridos não as deixam procurar um médico. "Não conseguimos trazer mais da metade delas, porque os maridos não deixam", diz a médica Tloma Homa, de 45 anos. "Quando a mãe usa, os filhos usam. Elas lhes dão chá de ópio para enganar a fome", revela.   Najeeba, de 40 anos, vendeu tudo por 40 mil afeganes (U$ 800) e refugiou-se com a família no Paquistão após o marido ser preso e torturado por talebans. No campo, o dinheiro minguou e Najeeba viu os três filhos passarem fome e o caçula, de 8 anos, morrer atropelado quando vendia água em um farol. Ela começou usando ópio para "aguentar a tristeza" e, sem dinheiro, alimentava os filhos com a droga. "Na divisa com o Paquistão, ópio é mais barato que comida."   Nos centros para viciados, os pacientes recebem seringas descartáveis - a contaminação por HIV vem crescendo no Afeganistão. Eles são estimulados a reduzir as doses, até passarem para o fumo e, então, abandonarem a droga. Ajmal, de 29 anos, voltou do Irã no ano passado. Viciado há 3 anos, ele reduziu pela metade o consumo de heroína para um grama por dia (U$ 4).   As 50 famílias de Shah Shahid ganharam do governo um pedaço de terra em Benisworsik, na Província de Parwan. "Mas não havia emprego, saúde, educação, nada lá. Voltamos para Cabul", diz. "Achamos que encontraríamos paz e qualidade de vida com o novo governo", diz Feda Mohammad, de 35 anos, que desde 1983 migra de um campo de refugiado a outro - os pais morreram, ele se casou e os quatro filhos nasceram em tendas. No caminho, foi deixando tudo para trás. Sobraram cobertores, lençóis, baldes e uma chaleira, em torno da qual passam os dias conversando e tomando chá, único luxo.

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