A lenda de um 'contador de histórias cantadas' na Itália

Por mais de 60 anos, Franco Trincale cantou sobre a exploração dos trabalhadores e a injustiça social

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Por Elisabetta Povoledo
Atualização:

MILITELLO, SICÍLIA - Não é uma sensação a qual ele estivesse acostumado: Franco Trincale ficou sem palavras.

O cantor, que passou cerca de 60 anos impressionando o público com canções a respeito da exploração dos trabalhadores, das injustiças sociais e dos episódios da história política e criminal da Itália durante décadas de instabilidade social viu-se incapaz de emitir mais que um suspiro.

Franco Trincale, um dos últimos “cantastorie” da Sicília (literalmente, "cantores de histórias”), foi homenageado em sua cidade, Militello. Foto: Nadia Shira Cohen para The New York Times

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“Perdi a voz", gemeu ele num cômodo repleto de visitantes que vieram vê-lo na prefeitura de Militello, cidade onde ele mora na Sicília, para homenagear seu compatriota.

Trincale, 83 anos, estava em Militello para a inauguração em outubro de uma exposição dedicada à sua longa carreira como um dos últimos tradicionais “cantastorie” da Sicília (literalmente, "cantores de histórias”), que relatam acontecimentos sob a forma de canção.

Trincale ligou o smartphone a um amplificador e escolheu uma canção, com sua poderosa voz de tenor preenchendo o cômodo.

A balada contava a história de um ataque suicida contra o quartel-general da polícia militar italiana em Nasiriya, Iraque, em 2003, que deixou 18 italianos e 9 civis iraquianos mortos.

A apresentação de Trincale não pôde contar com recursos comuns da arte dele: um violão e o amplo painel pintado que os cantastorie sicilianos costumam usar, ilustrando o trágico relato como numa história em quadrinhos.

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A exposição, montada numa ala da prefeitura, continha painéis desse tipo em quantidade suficiente para toda uma vida, coloridas codas da tradição dos cantastorie. Pintados por Trincale, e também por artistas profissionais, os painéis capturam essa abordagem frequentemente irônica para a recente história italiana, filtrada por sua opinião pessoal esquerdista e seu imenso coração.

Havia relatos da imigração maciça do empobrecido sul da Itália para o norte do país, mais industrializado, e a agitação trabalhista que se seguiu; histórias do controle exercido pela Máfia nessa região; e um apanhado das figuras da política recente, incluindo o primeiro-ministro Giulio Andreotti, nomeado sete vezes para o cargo e morto em 2013, e o magnata da mídia convertido em político, Silvio Berlusconi.

Os advogados de Berlusconi, indiciado numa série de processos, chegaram a alegar que seu cliente não receberia um julgamento justo por causa das ácidas canções de Trincale.

“Trincale tem o mérito de trazer a arte dos cantastorie para era moderna", disse Claudio Piccoli, editor de um periódico a respeito dos cantastorie. “Ele transformou a arte.”

Os cantastorie tradicionais se concentravam em temas folclóricos e eram capazes de alongar as histórias por horas, disse ele. Trincale falava de assuntos tão variados quanto o terrorismo e o astro do futebol, Maradona, em canções de três ou quatro minutos.

Trincale começou a cantar ainda menino, quando era aprendiz numa barbearia local.

“Aprendi a tocar quatro acordes no violão, os mesmos quatro acordes que uso até hoje", disse ele.

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“Quando era pequeno, eu costumava fugir para a barbearia para escutar o cantastorie, de boca aberta", lembrou ele. “Ficavam de pé numa cadeira, para serem facilmente notados. Não usavam microfone, apenas o violão, e uma multidão se reunia para ouvi-los, e eu pensava, ‘Quero aprender a cantar desse jeito.’”

“Acho que sou um pouco exibicionista", acrescentou ele.

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Na exposição, Trincale aparecia abraçado com um violão que ganhou em 1968 dos operários de uma fábrica da Alfa Romeo em Arese. “Eu era a voz dos trabalhadores", disse ele.

Em 2006, a província siciliana de Catânia comprou o acervo de versos, painéis, cartazes, troféus, prêmios e documentos de Trincale. Mas um museu, proposto, nunca se materializou (“Minhas coisas ficaram hibernando na Catânia", resmungou Trincale). Esse ano, o prefeito de Militello, Giovanni Burtone, estabeleceu um acordo de empréstimo para ficar com o material por cinco anos, na esperança de transformá-lo numa atração turística da cidade.

“Quando se apresentou em Militello na última vez, no ano passado, Franco tocou algumas baladas novas", disse Burtone. “Nunca parou de trabalhar.”

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