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A liberdade em usar um par de jeans para os desertores da Coreia do Norte

Para eles, o caminho para sentirem-se livres foi pavimentado pela auto-afirmação com relação ao que podem vestir desde que deixaram seu pais de origem

Por Hahna Yoon
Atualização:

Em maio do ano passado, em um daqueles relatórios que pareciam inacreditáveis e, ao mesmo tempo, tentadores demais para ignorar, houve uma onda de empolgação em vários jornais ocidentais com a suposta notícia de que Kim Jong-un, o governante autocrático da Coreia do Norte, havia emitido um decreto oficial proibindo jeans rasgados ou skinny.

Embora a notícia tenha se revelado uma versão hiperbólica de notícias desatualizadas, três desertores que vivem na Coreia do Sul disseram que a ideia do jeans como símbolo de uma espécie de rebelião por um futuro diferente para aqueles que vivem na Coreia do Norte não é tão absurda quanto pode parecer.

Kang Nara (esq) cruzou a fronteira com a Coréia do Sul em 2015 e agora trabalha como produtora, e Yoon Miso (dir) cruzou a fronteira em 2013 e trabalha como consultora de imagem. Foto: Woohae Cho/The New York Times

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“Quando eu morava na Coreia do Norte, nunca tive a liberdade de vestir o que queria, mas nunca questionei porque não sabia que essa liberdade existia”, disse Jihyun Kang, 31, que cresceu em Chongjin, a terceira maior cidade da Coreia do Norte.

Kang vislumbrou essa liberdade pela primeira vez quando estava de férias no Monte Paektu e viu um turista.

“Eu estava convencida de que ele era um morador de rua porque só os mendigos usavam roupas rasgadas na Coreia do Norte”, ela disse. “Mas meu pai me disse que era caro para os estrangeiros visitarem a Coreia do Norte e ele supôs que os jeans estavam rasgados como uma forma de estilo.”

Kang disse que foi a primeira vez em sua vida que ela pensou sobre essa palavra - “estilo” - e as perguntas a levaram a interrogações mais amplas sobre sua identidade e o significado de liberdade pessoal que acabaram por levá-la à decisão de deixar seu país de origem.

Ela não está sozinha. Kang Nara, uma estrela das redes sociais de 23 anos, e Yoon Miso, uma consultora de imagem de 32 anos, que trocaram a Coreia do Norte pela Coreia do Sul, traçam seus caminhos para a liberdade através da moda. Agora elas estão tentando ajudar outras pessoas a entenderem como as roupas podem ser poderosas.

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O que a moda significa na Coreia do Norte?

Embora exista pouca informação disponível sobre a indústria da moda na Coreia do Norte, os estilos pelo país variam significativamente de uma província para outra e de uma classe social para outra. Em Pyongyang, por exemplo, a capital intensamente monitorada onde vive a elite, a moda é muito diferente de sua expressão no resto do país, onde cerca de 60% da população vive na pobreza absoluta.

Os cidadãos norte-coreanos recebiam provisões estatais de roupas - conjuntos semelhantes a uniformes de duas peças em cores sólidas limitadas - mas quando a economia entrou em colapso em meados da década de 1990, as pessoas desenvolveram seu próprio sistema de lojas locais, e tem havido uma gama mais ampla de opções desde então.

Os vendedores do mercado inicialmente vendiam tudo o que conseguiam cultivar, cozinhar ou costurar em casa, mas em 2017 havia 440 mercados oficiais estocados principalmente com produtos importados da China, incluindo alimentos, utensílios domésticos e vestuário.

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Há também um mercado clandestino ativo, com itens como maquiagem, pen drives contendo mídia estrangeira e “roupas proibidas”. Os desertores dizem que os verdadeiros fashionistas conhecem vendedores particulares e compram os itens mais arriscados diretamente em suas casas.

As leis e as punições na Coreia do Norte não são públicas, então não fica claro quais roupas e acessórios são ilegais. No entanto, há diretrizes que proíbem "itens que representam ideias capitalistas" descritas no Rodong Sinmun, o jornal estatal do país.

Organizações como a Liga da Juventude Patriótica Socialista há muito interpretam essas diretrizes como proibição de minissaias, camisas com letras em inglês e vários tipos de jeans, e policiam o público de acordo com isso.

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Por décadas, aqueles que ousaram se vestir “fora da caixa” enfrentaram a vergonha pública ou mesmo a prisão. Kang se lembrou de uma vez, por exemplo, em que ela teve que implorar a um oficial da patrulha para poupá-la de uma sessão de vergonha depois que foi pega usando calças jeans brancas (ela conseguiu).

“Se eu quisesse usar algo como um par de jeans, eu tinha que ficar me escondendo”, disse Kang. “Eu teria que pegar ruas secundárias ou me esconder se visse um oficial da patrulha vindo em minha direção.”

Yoon Miso foi forçada a pedir desculpas publicamente por ser pega usando jeans quando tinha 14 anos na Coréia do Norte. Foto: Woohae Cho/The New York Times)

Yoon, que é de Hyesan, disse que comprou seu primeiro par de jeans - uma calça boca de sino azul - na casa de um negociante particular quando tinha 14 anos.

“Um dia, usei o jeans com um top bem colorido e fui pega”, ela disse.

Um oficial da Liga da Juventude Patriótica Socialista cortou seus jeans em uma sessão pública de vergonha, ela disse, a fez implorar publicamente por perdão e notificou sua escola, onde ela teve lições sobre os perigos das "ideias burguesas capitalistas".

Em 2009, aos 20 anos, Yoon se mudou para a China e morou lá por dois anos antes de se mudar para a Coreia do Sul em 2011.

“Para mim, moda é liberdade, e deixei a Coreia do Norte porque queria poder usar o que eu quisesse”, ela disse.

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Aprendendo a se vestir de novo

O Ministério da Unificação da Coréia do Sul estima que 34.000 norte-coreanos cruzaram a fronteira desde 1998. Correndo o risco de enfrentar a prisão ou pior se forem pegos, os desertores normalmente partem pelo sul da China, viajando pelo Laos e depois pela Tailândia antes de chegar à Coreia do Sul.

Alguns trazem uma pequena quantidade de roupas da Coreia do Norte ou da China, onde podem ter se adaptado à moda rural chinesa. Por fim, eles entram na Coreia do Sul mais ou menos de mãos vazias.

Após a chegada, os desertores passam até três meses sendo investigados pelo Serviço Nacional de Inteligência da Coreia do Sul, enquanto moram em um prédio isolado nas montanhas. Se forem aprovados, eles se mudam para um centro de apoio chamado Hanawon, onde os desertores aprendem o básico sobre operações bancárias, tecnologia e compras.

Parte dessa educação geralmente inclui uma viagem de campo a uma loja de departamentos, onde os alunos de Hanawon recebem dinheiro para fazer compras. Embora a Coreia do Norte supostamente tenha um punhado de lojas de departamentos que vendem marcas ocidentais para 1%, essa viagem de campo é a primeira para a maioria dos desertores.

Kang Nara, que perdeu todas as suas roupas quando cruzou o rio Yalu em 2014, disse que se lembra de ter comprado um colete acolchoado K-Swiss forrado com pele de guaxinim, um item que sua professora disse ser elegante para crianças de sua idade. Yoon descreveu o shopping em que esteve, Shinsegae (que significa "novo mundo"), como "um mundo alternativo incrível". Ela se lembra de ter comprado um pijama curto de algodão com babados que tinha visto no drama coreano Stairway to Heaven.

Enquanto Jihyun Kang disse que estava muito ocupada para pensar em se encaixar durante aqueles primeiros anos, Kang Nara e Yoon admitiram se sentir inibidas sobre suas roupas e seu status de desertoras, que muitas vezes são desprezadas na Coreia do Sul. Yoon, além de esconder sua origem norte-coreana, disse que tentou parecer e soar como alguém local.

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“Às vezes eu pensava nas roupas que usava em casa e como todos diziam que eu ficava bonita com elas, mas nunca quis me vestir dessa forma”, ela disse. “Queria me vestir da forma mais sul-coreana possível.” Para entender o que isso significava, ela passou horas no YouTube assistindo a tutoriais de beleza e buscou dicas de moda no Get It Beauty, um programa popular de televisão sul-coreano apresentado por maquiadores e celebridades da moda.

Kang Nara disse que lamenta muitas de suas primeiras escolhas de moda, como amarelos e rosas extravagantes, blusas com tachas e camisetas com grandes letras em inglês.

“Eu me vestia como os ricos da Coreia do Norte se vestiam, que era a interpretação deles de como os chineses ricos se vestiam”, ela disse. Com o tempo, ela suavizou e simplificou seu estilo, seguindo dicas de celebridades sul-coreanas como a atriz Cha Jung-won.

“Quando as pessoas eventualmente descobriam que eu era do Norte, diziam que não podiam acreditar, e sua surpresa sempre parecia um elogio”, disse Kang. “Ficavasatisfeita com minha forma de vestir - como se eu fosse um corvo que conseguiu passar despercebido entre as pombas.”

Modelando sua história nas costas

Yoon disse que só recentemente decidiu ser franca sobre o lugar de onde veio. Graduar-se em moda, conseguir um emprego na área e se envolver mais com a comunidade de desertores aumentaram sua confiança.

Jihyun Kang, à direita, e Marie Boes, fundadoras da IStory, marca de moda de impacto social. Foto: Woohae Cho/The New York Times

A maior lição de moda que ela aprendeu desde que veio para a Coreia do Sul é "ajustar as tendências atuais para se adequarem a você, não tentar copiar o que outras pessoas estão vestindo", ela disse. Ela está inscrita em um campo de treinamento em empreendedorismo chamado Asan Sanghoe e espera começar uma linha de cosméticos, com foco nas cores vivas que seriam proibidas na Coreia do Norte.

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Jihyun Kang se formou no mesmo campo de treinamento no ano passado. Em abril, ela começou uma linha de roupas chamada Istory, para a qual entrevista desertores norte-coreanos e depois traduz suas narrativas em imagens, que por sua vez são impressas em cotoveleiras e costuradas em camisetas de mangas compridas.

Um QR code na etiqueta da camisa leva a uma página da internet sobre a história do desertor: história da família, infância, a fuga da Coreia do Norte e objetivos futuros. A camiseta que representa a própria história de Kang é um desenho do Monte Paektu com um pôr do sol laranja à distância.

“A moda permite que você conte uma história”, disse Kang, acrescentando que por meio de seu trabalho ela conheceu muitos desertores que lutaram no Norte e continuam a superar muitas dificuldades na Coreia do Sul. “Quanto mais as pessoas souberem dessas histórias, mais espaço haverá para mudanças, e quero ser parte disso.” /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

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