A obsessão de Hollywood pelos cartéis

Ao insistir em apresentar personagens latinos como criminosos, o cinema americano reverbera o discurso de intolerância de Donald Trump

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Por Héctor Tobar
Atualização:

Eles continuam chegando. Armados com réplicas de armas automáticas que disparam cartuchos sem balas, galões de sangue falso e com sotaque mexicano estropiado, os cartéis atravessam a "indefesa" fronteira americana e invadem as salas de cinema e os streams de vídeo.

Estes vilões da tela torturam os inimigos, matam os bons americanos e surgem repentinamente em qualquer lugar. No ano passado, em Sicário: Dia do Soldado, que é um dos pelo menos seis filmes em que o grande Benicio Del Toro luta contra senhores da droga latino-americanos, eles foram ligados ao ataque a um supermercado em Kansas City, Missouri.

Na TV e no cinema, os atores latinos em geral vivem fantasias repletas de estereótipos como agentes dos cartéis da droga. Benicio Del Toro em 'Sicário: Dia do Soldado', de 2018. Foto: Richard Foreman Jr./Sony Pictures via Associated Press

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O agente do cartel - seja ele um chefão, um matador ou um pequeno traficante - tornou-se a imagem por excelência um integrante do povo latino na televisão e no cinema americano. Assim como é a imagem predominante do povo latino no discurso do presidente dos Estados Unidos.

Segundo os trailers da rede, ou a nova temporada de sucessos do próximo verão, os agentes latinos da droga às vezes vencem os chefões rivais - terroristas jihadistas e mafiosos russos - e tornam-se os principais caras maus do cinema dos Estados Unidos.

O diálogo e as imagens dos filmes sobre os cartéis associam a identidade latina ao mal intrínseco puro e simples. Está na hora de Hollywood se perguntar: "Que mensagem estamos enviando ao público americano quando pedimos que os atores latinos deste país representem uma execução após a outra? Tudo isso não estará cansando um pouco e ficando previsível?"

A qualidade desses espetáculos, falando em termos artísticos, varia enormemente: das séries de TV vencedoras de Emmys, como Breaking Bad e a comédia de 2013, nem tão celebrada, Família do Bagulho, a A Justiceira, produção do ano passado bastante criticada, e A Mula, de Clint Eastwood, em geral muito bem recebido. Mas eles não param de repetir os mesmos clichês: as personagens mal encarados da gangue latina comportando-se como loucos com pessoas brancas confusas; uma reunião secreta em uma fazenda mexicana, regada a tequila, e jovens latinas de biquíni servindo de colírio para os olhos à beira da piscina.

"Dá pra ver que está se tornando um gênero", observou Del Toro em entrevista ao jornal The Guardian em junho. A respeito dos filmes sobre drogas, acrescentou: "São os novos westerns".

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Infelizmente, este novo gênero não pretende buscar acontecimentos do passado dos Estados Unidos, mas representar uma ameaça supostamente real, aqui e agora. No final de dezembro, o presidente Dnald J. Trump fechou parte das agências do governo por causa de sua disputa com o Congresso sobre o muro que quer construir ao longo da fronteira, com a finalidade de impedir o ingresso de imigrantes que acusa de serem criminosos traficantes. E nunca para de fazer declarações falsas e distorcidas sobre os perigos representados pelos imigrantes latinos. Ao mesmo tempo, as histórias que Hollywood inventa para a telona vendem a imagem de bandidos hispânicos como uma ameaça à paz e à segurança dos Estados Unidos.

No odioso A Justiceira, de 2018, Jennifer Garner personifica uma fantasia trumpiana. No papel de mãe de subúrbio, cujo marido e filha foram assassinados por narcotraficantes latinos, e sozinha, toma a missão de vingadora, mata vários assassinos latinos e destrói um depósito de piñatas que funciona como quartel-general secreto de um senhor da droga. A revista The New Yorker o definiu um "filme racista que reflete a atual corrente política contra a imigração e seu foco paranoico no bando de criminosos internacionais da MS-13".

Como os narcotraficantes de A Justiceira, os vilões dos filmes sobre o tráfico são frequentemente uma mescla de alegorias e estereótipos. Os agentes do cartel na série da CBS SEAL Team parecem um exército do Estado Islâmico lançando um ataque contra os heróis como o que ocorreu em Benghazi. Os americanos refugiam-se em uma igreja mexicana e pedem ajuda a outra unidade SEAL da Marinha. Os episódios foram ao ar pouco depois que Trump determinou o envio de tropas para a fronteira mexicana com a tarefa de deter uma caravana de centro-americanos.

A série da Netflix Narcos: México tem a excelente atuação de Diego Luna no papel de um homem inteligente, empreendedor e profundamente imperfeito. Mas enquanto eu via Luna construir seu "império", desejei ver um ator latino atuar em um grande papel em Hollywood sem deixar atrás de si o rastro costumeiro de cocaína e cabeças cortadas. 

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Os vilões dos filmes narco são sempre hiperempreendedores cruéis, e em A Mula, eles jogam isso na cara do personagem de Eastwood: "Você está em nossas mãos". Tanto neste quanto em inúmeros outros filmes de qualidade inferior, os estereótipos latinos se tornam os símbolos da impotência do branco e de seus desejos descontrolados. Jason Bateman, por exemplo,recebeu uma indicação ao Globo de Ouro para seu papel em Ozark, como mais um gringo comum apanhado nas maquinações de um cartel mexicano.

Na vida real, os latinos trabalham as próprias fraquezas humanas e tentam construir seus impérios pessoais em áreas que não envolvem atividades criminosas: gerenciam a Walmart, estudam Direito, divorciam-se, participam de convenções nas vestes de seus heróis preferidos e fazem todos os tipos de coisas que os espectadores raramente os veem representar nos filmes tradicionais da televisão e do cinema americanos.

A história que predomina entre os mais de 57 milhões de latinos que vivem nos Estados Unidos não é a guerra da droga: é a desigualdade, a ambição do imigrante e as feridas provocadas pela separação das famílias. Estes temas aguardam um tratamento tão virtuosístico quanto em Sangue Negro, ou tão inteligente e direto quanto em Corra.

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Senhores executivos dos estúdios, em lugar de mais um filme com tatuagens falsas e sotaques horríveis, pensem na possibilidade de investir em novos talentos e em dar o sinal verde a um grande projeto latino inteligente. E considerem os narcos como a pimenta chili - uma especiaria que deveria ser usada com parcimônia.

Insistam na qualidade e na complexidade das histórias sobre os latinos desenvolvidas para o cinema, e talvez até sejam considerados gênios buscando inspiração em um épico americano real que nunca foi contado, mais interessante do que qualquer conspiração dos cartéis.

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