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Revelações de abuso sexual aceleram a sensação de declínio da Igreja Católica na França

O abuso de mais de 200.000 menores pelo clero nas últimas sete décadas abalou a nação e o que já foi um pilar da sociedade francesa

Por Norimitsu Onishi and Aurelien Breeden
Atualização:

PARIS - A Igreja Católica na França já foi tão poderosa que era considerada um Estado dentro do Estado. Na hierarquia global do catolicismo romano, a França consolidou sua posição já no século V, quando se tornou conhecida como a "filha mais velha da igreja".

Sauvé disse que o problema persiste, e acrescentou que até os anos 2000 a Igreja mostrou uma indiferença completa com as vítimas Foto: THOMAS COEX / AFP

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Embora o catolicismo tenha diminuído no mundo ocidental, seu declínio implacável na França é ainda mais notável devido à sua proeminência no passado. Agora, um relatório devastador solicitado pela Igreja sobre abuso sexual praticado pelo clero e lançado no início de outubro, depois de uma avaliação semelhante em outro lugar, foi mais uma degradação, abalando ainda mais o que já foi um pilar da cultura e da sociedade francesa.

O relatório, que confirmou histórias de abuso que surgiram ao longo dos anos, abalou a nação com detalhes de sua magnitude, envolvendo mais de 200.000 menores ao longo das últimas sete décadas. Reverberou muito em um país que já se transformou, nas gerações recentes, pela queda do catolicismo, e aprofundou o sentimento de uma Igreja francesa em acelerado declínio.

O Reverendo Laurent Stalla-Bourdillon, um padre e teólogo de Paris, disse que a Igreja ainda estava arcando com "a extensão de sua marginalização gradual na sociedade francesa".

“Marginalização em números, devido à diminuição das taxas de observância e marginalização na esfera política da estima pela Igreja como uma instituição”, disse Stalla-Bourdillon, que já foi capelão de legisladores franceses.

Como falhou em impedir o abuso sexual em seu meio, ele disse, a Igreja “não está apenas marginalizada mas também desacreditada.”

Globalmente, a Igreja Católica francesa ficou mais enfraquecida que suas contrapartes, especialmente na Alemanha e nos Estados Unidos. Para alguns católicos - que, em suas vidas, experimentaram o rápido encolhimento de sua fé na sociedade e em suas próprias famílias - o relatório acrescentou um sentimento de sítio.

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“Foi visto como um ataque,” Roselyne Delcourt, 80, disse após a missa na Notre-Dame de Grâce de Passy, uma paróquia no 16 º distrito de Paris, um bastião rico e conservador. “Mas não acho que vá prejudicar a igreja.”

Mas outra paroquiana, Dominique Dary, 66, disse que o relatório era uma oportunidade de mudança.

“Espero que a gente possa virar a página e ter uma igreja renovada,” ela disse.

Se alguns veem o relatório como uma oportunidade para reforma, eles podem ser abafados pelos católicos franceses que se tornaram cada vez mais conservadores política e culturalmente, disse Raphaël Liogier, um sociólogo francês que leciona na Sciences Po de Aix-en-Provence e é ex-diretor do Observatório dos Religiosos, um centro de pesquisas.

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Vivendo em uma sociedade onde a religiosidade cristã diminuiu mesmo com o crescimento do islamismo, os conservadores católicos franceses são uma força política poderosa e atores vocais nas guerras culturais que agitam o país, ele disse.

“Este relatório corre o risco de provocar uma reação entre aqueles que têm uma identidade católica muito forte e acham que isso foi longe demais”, disse Liogier. “Eles podem percebê-lo como uma conspiração de progressistas para enfraquecer a Igreja Católica e destruir o que resta da identidade francesa.”

Para as vítimas de abuso sexual do clero, contudo, o relatório foi um relato devastador de seu sofrimento e uma reprimenda há muito esperada para décadas de negação.

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François Devaux, cofundador de uma associação de vítimas, perguntou se "a igreja, depois de todas as suas traições, é capaz de se reformar".

“Podemos nos permitir confiar neles, mais uma vez, apesar de sua opacidade, para que façam tudo o que precisam para reabilitar todas essas vidas destruídas?” ele disse.

O poder histórico da igreja pode ser compreendido imediatamente pelos visitantes da Catedral de Notre-Dame em Paris ou de qualquer vila francesa, onde a igreja local fica no lugar mais proeminente. A igreja continuou a desafiar o Estado muito depois que a República Francesa nasceu em uma revolta contra a Igreja e a monarquia.

Mas sua influência diminuiu regularmente no século passado e acelerou no início dos anos 1960, quando 96% dos franceses declararam que foram batizados católicos, segundo o relatório.

Estudos usando dados do European Values Study descobriram que, em 2018, apenas 32% dos franceses se identificaram como católicos, com menos de 10% indo regularmente à missa.

Hoje, segundo suas próprias estatísticas, a igreja celebra a metade dos batismos de duas décadas atrás e 40% dos casamentos.

O número de padres na França diminuiu, mas não o número de padres estrangeiros, que muitas vezes são chamados do exterior para preencher as fileiras de um sacerdócio em declínio - em uma inversão da época colonial durante a qual o país era o maior exportador de padres para a África.

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Governos sucessivos limitaram o alcance da igreja, empurrando-a para fora do ensino escolar e de outras funções sociais que ela tradicionalmente desempenhava. Por décadas, escolas públicas foram fechadas até mesmo às quintas-feiras para permitir que os alunos participassem do estudo da Bíblia, segundo o relatório.

Céline Béraud, socióloga da Escola de Estudos Avançados em Ciências Sociais de Paris, notou que, segundo o relatório, mais da metade dos abusos estimados por membros do clero ocorreram entre 1940 e 1969.

“Esse é o período em que ainda havia dezenas de milhares de padres, quando as gerações mais jovens eram batizadas, iam para a escola religiosa ou eram escoteiras”, disse Béraud, que escreveu um livro sobre os escândalos de abuso sexual na Igreja Católica francesa.

Isabelle de Gaulmyn, uma editora importante do La Croix, o principal jornal católico da França, disse que o declínio da Igreja pode tê-la deixado relutante em enfrentar a questão do abuso sexual de frente, por medo de aumentar os desafios já existentes.

“A evolução foi muito brutal”, ela disse sobre a queda do poder da Igreja. “Então há uma certa sensação de que se trata de uma fortaleza sitiada.”

Esse sentimento também é alimentado pela sensação de que a igreja é pobre. Ao contrário de sua contraparte na Alemanha, que é sustentada por um imposto recolhido pelo governo, a igreja francesa não recebe nenhum fluxo constante de subsídios e conta quase que exclusivamente com doações de fiéis, embora, sob a complexa lei secularista da França, o Estado pague pela manutenção de quase todos os edifícios da igreja.

Vítimas de abuso sexual, que esperam uma compensação da igreja, são rápidas em apontar que algumas dioceses possuem bens imobiliários consideráveis.

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Olivier Savignac, que foi abusado sexualmente por um padre quando menor de idade e fundou uma associação para vítimas, disse que eles queriam uma compensação para recuperar anos de contas médicas, “não uma pequena quantia simbólica” coberta por doações de fiéis.

“Queremos que as dioceses paguem dos seus bolsos”, ele acrescentou.

Muitos dizem que o relatório colocou a Igreja em um momento decisivo - reforma ou enfraquecimento maior.

"É agora", disse Stalla-Bourdillon. "Não depois." /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

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