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Na Austrália, pesca submarina vira escape para quem quer controlar a ansiedade

Eu ficava vendo as pessoas entrando e saindo do mar com um arpão. Para entender o que eles estavam fazendo, eu prendi a respiração e mergulhei fundo

Por Damien Cave
Atualização:

SYDNEY - Emma Shearman segurava firme no arpão e se concentrava na respiração. Inspira, expira, relaxe, ela falava consigo mesma. Profundo e constante, bem ritmado, como as ondas do mar. Ela mergulhou no frio do Oceano Pacífico perto da costa rochosa de Sydney, prendendo a respiração até atingir uma profundidade de cerca de 10 metros. Quieta e calma, ergueu a arma, mirou e atirou – acertou bem no meio de um morwong vermelho.

Era a segunda captura do dia. Seu amigo Tim Charody, que lhe ensinara a pesca submarina durante o lockdown do coronavírus na Austrália, já havia pegado outro morwong, peixe comum nessas águas. Mas era o mergulho mais profundo de Shearman, e ela emergiu toda orgulhosa, segurando sua presa pelas guelras.

Emma Shearman em uma caça submarina em Sydney. Foto: Michaela Skovranova/The New York Times

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“Sinto uma verdadeira coragem e confiança em saber que posso sair, pegar minha própria comida, prover – e ainda fazer coisas femininas, tipo dançar salsa e usar salto alto”, disse ela quando já estávamos todos em terra firme. “É muito desafiador”, acrescentou ela, “mas também é uma coisa meditativa”.

Eu me juntei a eles numa manhã bem cedo, por curiosidade. Nos últimos meses, desde o primeiro lockdown do coronavírus, tenho visto cada vez mais gente entrando e saindo do mar de Sydney com seus arpões. Certo dia, quase trombei com um pai empunhando um arpão e arrastando um salmão australiano para o nosso subúrbio. Foi aí que comecei a me perguntar o que estava pegando com todos esses "Poseidons" australianos.

Faz muito tempo que Sydney é uma cidade de pranchas de surfe nos carros e areia nas calçadas. Aqui o oceano é que nem aquele vizinho que você vê em todo lugar aonde vai. Ele aparece nos cantos mais inesperados da costa escarpada e por quilômetros ao longo da enseada que tem forma de folha de carvalho – como Mark Twain notou em 1897, quando chamou seus tons de azul de “soberbamente belos”.

Emma Shearman em uma caça bem-sucedida. Foto: Michaela Skovranova/The New York Times

Todos aqueles arpões pareciam estar trazendo uma vibe mais profunda e sombria. Pelo menos, era o que eu pensava. Mas, na verdade, numa época de aumento do desemprego e de restrições aos esportes coletivos e aos encontros sociais, a pesca submarina virou uma forma de fuga cada vez mais popular para pessoas que estão em busca de calma, controle e equilíbrio longe das preocupações da terra firme.

O equipamento está esgotado nas lojas de mergulho de toda a costa leste da Austrália desde março. Jovens e velhos, homens e mulheres: todos estão encontrando alguma coisa para seus estômagos e almas nessa prática tão antiga e elementar. “É tudo uma questão de viver do oceano”, disse Robert Cooley, caçador submarino por toda a vida e líder dos Gamay Rangers, um grupo aborígine que ajuda a gerenciar e proteger a Baía de Botany, no extremo sul de Sydney.

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“É o tipo de coisa que reconecta a sua respiração, longe da cidade grande”. Cooley, 53 anos, alto, falante e cheio de histórias do folclore local, disse que sua equipe de meia dúzia de patrulheiros já havia feito bom uso de suas habilidades de caça submarina. Durante o pico do lockdown de Sydney em abril, sua caça subaquática virou um serviço comunitário. Entre peixes, lagostas e moluscos, eles pegaram 3 mil refeições para distribuir aos vizinhos necessitados.

“Foi um trabalho fundamental”, disse Cooley. “Alguns de nossos idosos vivem sozinhos. Outros não podiam sair de casa”. Um dia, ao amanhecer, eu o encontrei na baía onde ele havia pescado seu primeiro bagre quando menino. Mais tarde naquela manhã, nos juntamos a alguns outros patrulheiros no ponto onde James Cook atracou em 1770, juntando as culturas europeia e aborígene pela primeira vez.

Robert Cooley, à esquerda, líder dos Gamay Rangers, um grupo aborígene que ajuda a administrar e proteger Botany Bay em Sydney, com Bryce Liddell. Foto: Michaela Skovranova/The New York Times

Cooley e dois outros patrulheiros mergulharam de cabeça, usando suas longas nadadeiras e cintos com pesos para procurar presas entre as rochas e debaixo das escarpas costeiras. Em muitos lugares, a caça submarina com equipamento de mergulho é permitida. Na Austrália, é considerada trapaça. A habilidade e a alegria do esporte vêm com o esforço dos pulmões. A maioria das pessoas aprende com amigos, mas eu fiz aulas de caça submarina com dois garotos de 14 anos.

Fábio Leitão, cabelos presos num rabo de cavalo, natural dos Açores, me ensinou que, se eu não respirasse fundo nem hiperventilasse, conseguiria prender a respiração por mais tempo. Então, quando um dos patrulheiros acenou para uma lagosta, eu estava pronto.

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Estabilizei a respiração e fui mais fundo, segurando o máximo que podia. A lagosta tinha se alojado numa posição difícil. Tentei pegá-la mas não consegui – não ia ter post no Instagram, não peguei nada nas minhas viagens de reportagem – mas com mais alguns mergulhos, os patrulheiros resolveram o assunto.

“Meu supermercado é mais seguro do que aquele aonde você vai”, disse Cooley. Em relação ao coronavírus, ele estava certo, claro. Mas a caça submarina tem seus riscos. Os tubarões são valentões preguiçosos que pegam os peixes depois que eles são atingidos. Desmaios em águas rasas podem causar afogamento se não houver ninguém por perto para ajudar.

Fábio Leitão ensina técnicas de sobrevivência emergencial. Foto: Matthew Abbott/The New York Times

Ao que parece, foi o que aconteceu com Alex “Chumpy” Pullin, 32 anos, um snowboarder da equipe olímpica australiana que morreu sozinho durante a pesca submarina no início de julho. Mas, mesmo assim, junto com esses perigos vêm os benefícios. Em Sydney, dá para encontrar peixes comestíveis a poucos metros de profundidade, e a caça submarina é a forma mais sustentável de pesca, sem redes nem iscas deixadas para trás.

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Muitos “caçadores” têm muito orgulho de conseguir alimentar suas famílias com a matança. Kimi Werner, caçadora campeã do Havaí, sempre fala sobre se sentir abraçada pelo oceano: a pressão em seu peito, a paz que ela sente olhando para o sol lá de baixo. 

Shearman, 25 anos, descreve a experiência como uma distorção, uma curvatura no tempo. Nós nos encontramos ao amanhecer no topo de um penhasco em Manly, subúrbio à beira-mar ao norte de Sydney, onde nosso pequeno grupo caminhou por uma trilha traiçoeira até um afloramento acidentado. A água estava fria, as ondas estavam grandes e vimos alguns pequenos tubarões junto com uma arraia do tamanho de uma cama king-size. Quando saímos da água, mais de três horas haviam se passado num piscar de olhos.

Mais tarde, quando lhe perguntei o que ela pensava durante todo aquele tempo na água, Shearman respondeu: “Na verdade, eu não penso em nada. Não é igual à corrida, onde você pensa nas suas ideias, nas coisas que quer fazer – você simplesmente está lá”. Em tempos tão incertos em terra firme, só isso já atrai muita gente para o mar. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

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