Baguetes premiadas na França são produzidas por filhos de imigrantes

O domínio da tradicional arte da panificação é quase um desafio ao conceito de 'alma francesa'

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Por Adam Nossiter
Atualização:

PARIS - Cuidado com a cesta de crocante pão fresco colocada à sua frente. Nem todo o pão francês foi criado igualmente. A baguete clássica é tão sagrada que a lei francesa tem regras rigorosas que a codificam e regulam.

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São poucas as coisas associadas com a França quanto a baguete, a bengala crocante que anuncia sua nacionalidade como nenhum outro tipo de pão.

Por isso, o fato de esse símbolo do espírito francês por excelência ser perfeitamente dominado por Mahmoud M’seddi, filho de imigrantes e vencedor do Grande Prêmio conferido à melhor baguete parisiense deste ano, significa algo mais do que um excelente produto da arte da panificação. Neste momento em que o presidente Emmanuel Macron adota uma política de endurecimento contra a imigração, o triunfo de M’seddi desafia o próprio conceito da alma francesa.

Pergunte a ele sobre a importância de seu pai ter imigrado da Tunísia há mais de 30 anos, e ele responderá indignado: “Eu sou francês. Esta é minha pátria”.

Como bom francês, ele absorveu a clássica visão da República Francesa. É assimilacionista, e não integracionista; não existem distinções étnicas, apenas cidadãos da França. A Mãe França resume todas as identidades em uma só.

Mas M’seddi, 27, não foi o único a conquistar um dos ícones sagrados da França. Os que defendem a tradição são os imigrantes ou seus herdeiros.

O vencedor da melhor baguete do ano passado, Sam Bouattour, também é filho de um imigrante tunisiano. Há três anos, foi um padeiro de origem senegalesa, Djibril Bodian, que ganhou por duas vezes. Dois anos antes disso, foi outro tunisiano.

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M’seddi agora tem o privilégio de fornecer por um ano ao Palácio do Eliseu, sede da presidência francesa, o pão dos pães.

Embaixo de uma calçada da Rive Gauche em Montparnasse, no espaço de trabalho que M’seddi chama de seu “laboratório”, onde o rádio toca música popular árabe, a massa que ele prepara se metamorfoseia em crocantes baguetes.

Mahmoud M'seddi, filho de imigrantes tunisianos, recebeu o prêmio da melhor baguete parisiense. Foto: Dmitry Kostyukov para The New York Times

Seu pão - fabuloso, crocante, natural - é claramente superior aos seus primos industrializados sem sabor, os mais comuns em Paris. O perfume da crosta escura pode ser sentido em outro ponto da casa. Quando você morde uma de suas baguetes, sente o gosto do trigo, não de substâncias químicas.

“Eu me considero um artista, um mágico”, disse. “Pego a matéria-prima e a trabalho. E com o produto do meu trabalho, faço as pessoas felizes”.

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Doze milhões de pessoas frequentam uma boulangerie, a padaria, todos os dias para comprar a baguete, disse o presidente do sindicato dos padeiros de Paris, Franck Thomasse, ao conferir o prêmio a M’seddi diante da Catedral de Notre-Dame, recentemente.

“Fora da França, ela é considerada um dos principais símbolos do nosso país”, afirmou Thomasse. Mas quando foi lida a lista dos outros classificados na competição, destacou-se um fato. Cerca da metade deles tinha nomes não franceses. Os imigrantes estavam representados de maneira desproporcional.

Ocorre que, todos os anos, 1.200 padarias fecham na França. O trabalho é duro, e o pai de M’seddi, Mohamed, tentou evitar que o filho acabasse se envolvendo nele. O pai levanta às 4h da manhã para fazer o pão em uma padaria associada.

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A prefeita de Paris, a socialista Anne Hidalgo, definiu os padeiros como a resposta às medidas contrárias à imigração. “Não só eles não tiram o pão das nossas bocas, como põem o pão nelas”, afirmou.

Energia e “paixão” - nas palavras de M’seddi - são os ingredientes de seu sucesso. Ele mora em um apartamento sobre o Boulevard Raspail, por isso pode cuidar de seu pão a todos os momentos do dia e da noite.

A fermentação leva horas. A perfeita alquimia de tempo, temperatura e ingredientes é observada com total precisão.

Ele pega a massa com delicadeza para transferi-la da máquina que a divide em grossos cilindros à máquina que lhes dá a forma e dali para o forno.

“Faço o máximo para preservá-la, até que ela esteja assada”, explicou. “É preciso proteger a massa do começo ao fim”.

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