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Chineses levam dinheiro e discriminação ao Quênia

A população do Quênia teme que a crescente presença de estrangeiros provoque um retrocesso que se assemelhe aos tempos do colonialismo

Por Joseph Goldstein
Atualização:

RUIRU, QUÊNIA - Antes do ano passado, Richard Ochieng, 26, não lembrava ter sentido o racismo na própria pele. Pelo menos, não quando era um órfão em sua aldeia, perto do Lago Victoria, onde todo mundo era negro como ele. Nem quando estudava na universidade, em outra região do Quênia. E tampouco quando, à procura de um emprego, chegou a Ruiru, um assentamento em grande expansão nos arredores da capital, Nairobi. Ali, Richard encontrou trabalho em uma indústria chinesa de motocicletas. Mas então seu novo chefe, um chinês de sua mesma idade, começou a chamá-lo de macaco.

Aconteceu quando os dois, em uma viagem de negócios, viram um bando de babuínos na beira da estrada. 

Richard Ochieng? said he had never experienced racism in Kenya until his Chinese boss called him a monkey. (Andrew Renneisen for The New York Times) 

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“Os seus irmãos”, comentou o chefe, e falou a Richard para dar algumas bananas aos bichos.

Humilhado, ofendido, Richard decidiu gravar uma das conversas do chefe, quando este declarou que os quenianos eram “como macacos”.

Depois que o seu vídeo circulou no mês passado, as autoridades quenianas deportaram o chefe para a China. Mas o episódio gerou uma crescente ansiedade no Quênia. De fato, o país acolhe atualmente a presença tentacular da China, e muitos quenianos se perguntam se a nação não terá recebido involuntariamente um grande contingente de estrangeiros poderosos que estão moldando o futuro do país - e trouxeram também atitudes racistas.

“Mesmo que desejemos muito o seu dinheiro, não queremos que eles nos tratem como se não fôssemos gente no nosso próprio país”, afirmou David Kinyua, 30, que administra um parque industrial em Ruiru, o mesmo em que se localiza a indústria de motocicletas onde Richard trabalha.

Nos últimos dez anos, a China emprestou dinheiro e construiu infraestrutura em uma escala enorme em toda a África. Para pagá-la, muitas nações africanas tomaram emprestado dinheiro da China ou usaram os próprios recursos naturais. E quando calcularam os custos, em geral se deram conta de um endividamento cada vez maior ou ocasionalmente constataram práticas trabalhistas baseadas cada vez mais na exploração por parte de algumas empresas chinesas. Mas em Nairobi, as preocupações com a discriminação estão se tornando cada vez fortes nas conversas.

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Muitos dos cerca de 40 mil chineses que se estabeleceram aqui ficam apenas alguns anos. Muitos vivem em grandes conjuntos habitacionais, e têm ônibus especiais para ir ao trabalho e voltar, o que favorece pouca interação social com os quenianos. E muitos chegam com uma visão hierárquica da cultura e da raça que tende a colocar os africanos nos últimos degraus da escala social, afirmou Howard French, ex-correspondente do jornal “The New York Times”, autor do livro “China’s Second Continent” de 2014, sobre a vida dos colonos chineses na África.

Uma ferrovia de 480 quilômetros construída pelos chineses entre Nairobi e Mombasa, tornou-se um símbolo da cooperação sino-queniana. Mas em julho, o jornal queniano “The Standard” descreveu uma atmosfera de “neocolonialismo” em relação aos trabalhadores quenianos sob a administração chinesa. Os quenianos foram impedidos de conduzir os trens, salvo quando há jornalistas presentes.

O Quênia, onde vivem mais de 40 grupos étnicos oficialmente reconhecidos, há muito tempo teve seus próprios problemas em razão de tensões étnicas. Mas a presença chinesa acrescentou mais um elemento instável.

Richard Ochieng conseguiu um emprego de vendedor, mas encontrou uma realidade diferente. O salário era uma fração do que lhe ofereceram inicialmente, afirmou, e ainda era descontado por causa de uma longa lista de infrações. “Não ria”, era uma das normas da companhia. Um funcionário que atrasasse 15 minutos podia ter de pagar com cinco ou seis horas de trabalho.

O gerente chinês Liu Jiaqi, 26, às vezes se mostrava bonzinho, disse Richard, mas quando alguma coisa saía errada, desabafava nos subordinados. Richard protestou várias vezes, mas os comentários sobre os macacos não pararam.

As frases que Richard gravou foram pronunciadas depois de uma viagem em que as vendas fracassaram. Richard perguntou ao chefe por que razão descontava sua raiva nele.

“Porque você é queniano”, explicou, afirmando que todos os quenianos, até o presidente, são “como macacos”.

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Richard diz que conhece as histórias do tempo do colonialismo e teme que os chineses provoquem um retrocesso do Quênia, em vez do progresso que os líderes da nação garantiram. “Estes sujeitos tentam nos levar de volta àqueles tempos”, afirmou. “Algum dia vou contar ao meu filho que quando era jovem, eu fui desprezado por ser negro”.

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