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Ciência quer saber como a pobreza afeta o cérebro infantil

Um ramo novo da neurociência procura responder a uma pergunta que há muito tempo é feita pelos pesquisadores. Recentes pacotes de estímulo do governo tornam o estudo mais relevante

Por Alla Katsnelson
Atualização:

Os novos pagamentos mensais abrangidos pelo pacote de estímulo do governo têm potencial para tirar milhões de crianças americanas da pobreza. Alguns cientistas acreditam que esse auxílio pode mudar a vida das crianças de uma maneira ainda mais importante – o desenvolvimento do seu cérebro.

Já é fato estabelecido que crescer na pobreza tem relação com as disparidades observadas no aproveitamento escolar, na saúde e no emprego. Mas um ramo emergente da neurociência busca saber como a pobreza afeta o cérebro em desenvolvimento.

Bebê de duas semanas é medido. Alguns cientistas acreditam que os novos pagamentos mensais do pacote de ajuda à pandemia podem mudar fundamentalmente a vida das crianças por meio de seus cérebros. Foto: Karsten Moran/The New York Times

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Nos últimos 15 anos, dezenas de estudos concluíram que crianças criadas em um contexto de vida precário têm diferenças cerebrais sutis comparadas com crianças de famílias com mais recursos. Em média, a área mais exterior das células do cérebro é menor, especialmente no tocante à linguagem e o controle dos impulsos, como também o volume de uma estrutura chamada hipocampo, responsável pelo aprendizado e a memória.

Essas diferenças não refletem características herdadas ou congênitas, sugere a nova pesquisa, mas as circunstâncias nas quais as crianças crescem. Os pesquisadores supõem que aspectos específicos da pobreza – como a nutrição abaixo do padrão médio, os níveis de estresse elevados, a educação de baixa qualidade – influenciam o cérebro e o desenvolvimento cognitivo. Mas até agora quase todo o trabalho é correlacional. E apesar de aqueles fatores terem algum papel em graus variados no caso de famílias diferentes, a pobreza é sua raiz comum. Um estudo chamado Babys’s First Years, iniciado em 2018, visa determinar se a redução da pobreza promoveria um desenvolvimento do cérebro mais saudável.

“Nenhum de nós acha que a renda é a única resposta”, afirmou o Dr. Kimberly Noble, neurocientista e pediatra na Columbia University, um dos membros que lideram o estudo. “Mas com o projeto Baby’s First Years, estamos deixando de lado a correlação para testar se uma redução da pobreza diretamente causa mudanças no desenvolvimento cerebral, cognitivo e emocional das crianças”.

Noble e seus colegas vêm examinando os efeitos do auxílio em dinheiro pago às famílias pobres em valores comparáveis aos que o governo Biden estabelecerá como parte da concessão ampliada do crédito fiscal para manutenção dos filhos.

Os pesquisadores selecionaram aleatoriamente mil mães com recém-nascidos que vivem na pobreza em Nova York, Nova Orleans, na região metropolitana de Twin Cities, e Omaha, Nebraska, para receberem um cartão de débito mensal de US$ 20 ou US$ 333 que podem usar como desejarem. (O governo Biden planeja pagar US$ 300 mensais por criança até a idade de cinco anos e US$ 250 para aquelas entre seis e 17 anos). O estudo vai monitorar o desenvolvimento cognitivo e a atividade cerebral das crianças por vários anos utilizando uma ferramenta não invasiva chamada EEF móvel, que mede as ondas do cérebro utilizando um boné equipado com 20 eletrodos.

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O estudo também vai monitorar a situação de emprego e financeira das mães, medir as condições de saúde materna, como níveis de hormônio do estresse, e o cuidado infantil. Em entrevistas qualitativas os pesquisadores investigam como o dinheiro afeta a família e, com o consentimento das mães, acompanham o modo como elas gastam seu dinheiro.

O objetivo é coletar dados da atividade cerebral das crianças de um e três anos em visitas às casas, e os pesquisadores já obtiveram um primeiro conjunto de dados sobre dois terços das crianças antes da pandemia. Como as visitas ainda não são possíveis, eles ampliaram seu estudo para crianças de quatro anos de idade e estarão coletando o segundo grupo de dados no próximo ano e não neste.

A pandemia, como também dois auxílios que muitos americanos receberam no ano passado, sem dúvida afetaram as famílias participantes sob diferentes aspectos, como deverá ocorrer com o estímulo aprovado este ano e os novos pagamentos mensais.

Mas como o estudo é randomizado, os pesquisadores esperam conseguir avaliar o impacto do novo auxílio em dinheiro, disse Noble.

O projeto Baby’s First Year é considerado uma tentativa audaciosa para provar, por meio de um ensaio randomizado, o elo causal entre redução da pobreza e desenvolvimento do cérebro.

“Certamente é um dos primeiros estudos, se não o primeiro” neste campo a ter implicações políticas diretas, afirmou Martha Farah, neurocientista na universidade da Pensilvânia e diretora do Center for Neuroscience and Society.

Mas a médica reconhece que os cientistas sociais e legisladores com frequência subestimam a relevância dos dados.

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“Existem insights factíveis que obtemos usando a neurociência ou as pessoas estão apenas enganadas por belas imagens do cérebro e termos da neurociência que impressionam? É uma pergunta importante”, disse ela.

São muitos os céticos. James Heckman, prêmio Nobel de Economia, da universidade de Chicago, que estuda a questão da desigualdade e mobilidade social, disse não ver “nenhum indício de que alguma medida política surgiria disto salvo a afirmação de que, sim, há uma vaga impressão de uma vida econômica melhor”.

Samuel Hammond, diretor de políticas relacionadas com a pobreza e o bem-estar social, no Niskanen Center, que trabalhou na proposta oferecida pelo senador Mitt Romney de um auxílio infantil, concorda que monitorar a fonte de qualquer benefício cognitivo observado é complicado.

“Tenho problemas para desenredar as intervenções que realmente ajudam mais”, disse ele.

Por exemplo, especialistas debatem se determinados programas para as crianças beneficiam diretamente o cérebro de uma criança ou simplesmente liberam seus cuidadores do dever de buscarem um emprego e aumentarem a renda familiar, disse ele.

Mas exatamente por isto é que ajudar financeiramente famílias carentes pode ser a maneira mais robusta de testar o elo com o desenvolvimento do cérebro, disse Noble.

“É bem possível que esses caminhos particulares com vistas ao resultado no caso das crianças diferem entre as famílias. Assim, dar a elas o poder de usarem o dinheiro como acharem melhor,não pressupõe um caminho ou mecanismo particular que leve a diferenças no desenvolvimento infantil. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO

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