Proibição do comércio de roupas usadas no Quênia pode promover moda local

Para fabricantes e estilistas quenianos, a proibição de roupas usadas pode abrir as portas para que eles se tornem a nova vanguarda que reinventa as escolhas de moda no país

PUBLICIDADE

Por Abdi Latif Dahir
Atualização:

NAIRÓBI, QUÊNIA – O armário de Catherine Muringo consiste de roupas de segunda mão vindas de todos os cantos do mundo: blusas coloridas e jeans do Canadá, vestidos florais dos Estados Unidos, trench coats da Austrália e bolsas de couro do Reino Unido. Há anos, ela compra roupas e acessórios usados por valores baixos nos mercados ao ar livre em Nairóbi para criar seu estilo pessoal de moda.

Há sete anos, Catherine abriu uma empresa de compra e venda desses artigos, fornecendo casacos, moletons com capuz e sapatos para clientes no Quênia e outros mercados de fora, como BotsuanaUganda e Tanzânia. Mas, no final de março, o governo queniano proibiu a importação de roupas usadas dizendo se tratar de uma medida de precaução para frear a propagação do coronavírus. Apesar de as roupas usadas serem descontaminadas antes do seu embarque, as autoridades quenianas decidiram se precaver por causa do salto de infecções em países como os Estados Unidos.

Wagura Kamwana, proprietária de uma loja de tecidos do Textile Loft, em Nairobi, Quênia. Foto: Khadija Farah The New York Times

PUBLICIDADE

Agora, empresas como a de Catherine estão ameaçadas, como também as possibilidades dos quenianos que dependem de produtos importados baratos para se manterem na moda. “As mulheres quenianas adoram roupas de segunda mão e passam horas olhando, procurando”, disse Catherine. “Elas adoram a diversidade da segunda mão”. Segundo as autoridades, a proibição de roupas importadas será uma medida benéfica pois ajudará o Quênia a reviver sua própria indústria têxtil, erradicada no final dos anos 1980 quando o país começou a abrir seu mercado para a concorrência estrangeira.

“Acho que o coronavírus mostrou não só para o Quênia, mas para muitos países, que devem se voltar para dentro e procurar preencher algumas lacunas no mercado”, disse Phyllis Wakiaga, diretora-executiva da Associação de Fabricantes do Quênia. “A realidade é que esta é uma grande oportunidade para produzirmos roupas locais para as pessoas”.

Há anos, o Quênia e outros países na África Oriental têm procurado eliminar esse segmento de roupas usadas para impulsionar a manufatura local. Mas se deparam com a ameaça de serem banidos do Africa Growth and Opportunity Act (Lei do Crescimento e Oportunidade da África, em tradução livre), que promove o acesso ao comércio livre de impostos ou com taxas reduzidas ao mercado dos Estados Unidos. Muitos relutavam a impor uma proibição sobre roupas importadas, com exceção de Ruanda.

Wagura Kamwana, proprietária de uma loja de tecidos, a Textile Loft, pretende se beneficiar da proibição imposta agora. Kamwana, de 40 anos, cresceu usando roupas costuradas por sua mãe e depois passou a buscar trajes estilosos em mercados de segunda mão. Segundo ela, as quenianas gostam das roupas usadas por serem acessíveis e pela alta qualidade dos tecidos. 

Em 2016, ela abriu sua própria loja, oferecendo tecidos de alta qualidade, vindos da Europa, para quenianos que criam moda de luxo localmente. Em 2018, ela passou também a oferecer serviços de produção para estilistas que desejavam criar uma pequena linha de produtos, mas eram rechaçados por fábricas interessadas apenas em encomendas em grande quantidade.

Publicidade

Kamwana disse que designers e manufaturas deveriam colaborar e adotar algumas medidas para impulsionar o setor. “Levará alguns anos para essa cadeia de valor ser viável ou ser vista. O que podemos fazer de imediato é aperfeiçoar nossa arte de fabricação”. Outras empresas quenianas também têm respondido aos desafios apresentados pela pandemia focando no que é local.

Frederick Bittiner Wear, que faz a seleção de tecidos, o design e confecção sob medida para lojas na África Oriental, Europa e Estados Unidos viu uma redução das encomendas por causa da pandemia, e passou a produzir leggings, camisetas e coletes para o mercado local, disse Dominic Agesa, diretor gerente da companhia. Depois de contatar distribuidores e fornecer amostras, Agesa disse ter conseguido 50 encomendas em uma semana. 

Há muito tempo o Quênia “reluta” em incentivar as manufaturas locais, disse ele. Mas a proibição de importações foi uma medida que oferece condições mais favoráveis para a industrial local florescer. “Vamos conseguir satisfazer o mercado queniano e outros além dele? Aos poucos a resposta é sim”, disse ele.

Mas antes de um setor de vestuário robusto se estabelecer, afirmam especialistas, os fabricantes locais terão de vencer uma série de desafios, como o acesso inadequado a financiamento, o custo alto da energia elétrica e a falta de matéria prima, incluindo o algodão. O fato de grupos lobistas poderosos do setor de roupas de segunda mão nos Estados Unidos já criticarem a medida adotada pelo Quênia também não é um bom presságio, disse Emily Anne Wolf, pesquisadora na Leiden University, Holanda.

CONTiNUA APÓS PUBLICIDADE

O Quênia pretende ser o primeiro país da África Subsaariana a negociar um acordo de livre comércio dos Estados Unidos, o que pode prejudicar a intenção do país de manter a proibição de importação de roupas usadas. O setor de roupas apelou ao governo para suspender a proibição, afirmando que esse comércio não envolve nenhum risco à saúde pública. Mas as autoridades até agora descartaram a possibilidade.

No momento, estilistas e manufaturas do Quênia afirmam que essa proibição é uma oportunidade para eles começarem a esquematizar o futuro da moda no Quênia. “Este é um bom momento para se fazer escolhas e mudanças”, disse Kamwana, proprietária da Textile Loft. “Você vai se surpreender com o que este país irá oferecer”. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO

The New York Times Licensing Group - Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times.

Publicidade

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.