Como a Grã-Bretanha perdeu seu poder de sedução

O Brexit é apenas um sintoma de uma doença cultural que se expressa de muitas formas

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Por Aatish Taseer
Atualização:

“A função daqueles que deixaram de reinar é ensinar", escreveu V. S. Pritchett a respeito da Espanha em 1954, enquanto o Império Britânico ruía ao seu redor. No final do século 20, a Grã-Bretanha já há muito não governava. Mas, na Índia, onde cresci, um país que foi colônia britânica por quase 90 anos e sujeito à sua crescente influência desde o século 18, sua presença continuou a nos alimentar de muitas maneiras. O sistema nervoso do império sobreviveu à amputação da presença física da Grã-Bretanha; ainda nos sentíamos ligados a nossos antigos senhores. Não se tratava apenas das mãos de circulação nas vias, da estrutura do nosso exército e do sistema de governo. A Grã-Bretanha era parte de nosso patrimônio cultural.

Seja nos livros que líamos (a série de aventuras infantis "Enid Blyton and the Biggles”, e autores adultos como Evelyn Waugh, Graham Greene e W. Somerset Maugham) ou na forma de organizar as escolas e exames, a ortografia e a pronúncia, a Grã-Bretanha exerceu uma imensa influência. A Grã-Bretanha era onde sonhávamos em frequentar a universidade. Sempre que havia um importante acontecimento internacional (a guerra civil no Sri Lanka, por exemplo), eram os jornais e as emissoras de rádio britânicos que procurávamos. Os ingleses pareciam mais sabidos que os americanos, menos provincianos. Sentiam-se à vontade no mundo. A história do seu império fez deles uma espécie de ponto de convergência cultural para o mundo anglófono.

Apoiadores do "Vote Leave" (Vote para Sair )em Londres, dias antes do referendo sobre a saída da Grã-Bretanha da União Europeia. Foto: Adam Ferguson para The New York Times

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Isso é ainda mais verdadeiro em se tratando da república das letras. Desde a época de Joseph Conrad, a Grã-Bretanha foi capaz de reconhecer novas vozes e projetá-las para além de suas fronteiras. Os críticos, editores e agentes literários britânicos estavam mais bem posicionados do que os americanos para avaliar a escrita estrangeira. E, por mais de um século, a Grã-Bretanha foi o lugar que autores africanos e asiáticos (como eu) procuraram na esperança de serem compreendidos e terem seu talento divulgado para lugares com um público leitor maior, como os Estados Unidos. Uma série de grandes escritores (V. S. Naipaul, Salman Rushdie, Chinua Achebe, J. M. Coetzee) devem sua existência à Grã-Bretanha enquanto árbitro supremo da escrita vinda de praias mais distantes.

Esta deve ser a primeira vez em cem anos que isso deixou de ser verdadeiro. Outro dia, tive uma experiência que me fez perceber o quanto a forma do meu mundo tinha mudado. Meu editor britânico, com quem trabalho desde o início de minha carreira de autor, há quase dez anos, me escreveu para dizer que não poderia mais publicar meus livros. Mencionava as baixas vendas de obras anteriores e concluía dizendo que “o mercado mudou".

Qual tinha sido a mudança? O Brexit, é claro. Dois anos atrás, uma pequena maioria dos britânicos votou pelo aumento do isolamento do país. Embora os contornos exatos da saída da Grã-Bretanha do restante da União Europeia ainda estejam em debate, o choque do recuo do país em relação ao mundo é claramente sentido.

Deve ter sido uma notícia devastadora, uma verdadeira sentença de morte literária. Para um autor como eu, vindo da colônia e dependente de um mercado doméstico na Índia que não poderia me sustentar totalmente, a Grã-Bretanha tinha desempenhado um papel-chave em termos de prestígio e influência. As editoras britânicas, valendo-se de normas tão anacrônicas quanto ofensivas, costumavam cobrar “diretos da comunidade” dos autores das colônias. Nós os cedíamos sem pensar, acreditando que a Grã-Bretanha seria fundamental para o nosso sucesso. É somente agora, com a Grã-Bretanha fora da minha vida, que posso ver como os vestígios de uma mentalidade colonial me levaram a ter uma percepção exagerada da influência do país. Muito antes do Brexit, minhas referências culturais vinham se acomodando a uma nova realidade: os EUA tinham dado um passo adiante para preencher o vácuo deixado pela Grã-Bretanha.

Era nos EUA agora que sonhávamos em ir à universidade; eram nas revistas e jornais americanos que buscávamos informação a respeito de assuntos mundiais; agentes literários americanos estavam preparados para publicar aquilo que a Grã-Bretanha não podia mais publicar. A Índia também cresceu, podendo sustentar seus próprios autores como nunca antes. A Grã-Bretanha foi a única excluída da equação. Era como se o brilho pós-império tivesse finalmente desaparecido.

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Para minha surpresa, percebo que sinto falta do papel desempenhado pela Grã-Bretanha. Enquanto potência colonial, a Grã-Bretanha foi desprezível; mas, nos últimos 50 anos, conforme seu poder real encolheu, o país desempenhou um papel desproporcional na transmissão de cultura em todo o universo da língua inglesa. Nos EUA, onde frequentei a universidade e onde passo atualmente parte do ano, estou sempre consciente da tremenda distância cultural em relação à Índia, algo que a familiaridade compartilhada com a língua inglesa pode ocultar. Com a sua atuação de tradutora entre diferentes sociedades de língua inglesa, a Grã-Bretanha do século 20 facilitou a tarefa de ligar os pontos. Criou uma atmosfera de fertilização cruzada no mundo anglófono que produz personalidades tão diferentes entre si quanto Trevor Noah e Arundhati Roy, Wole Soyinka e Zadie Smith.

A Grã-Bretanha sabia ser condescendente. Os britânicos exigiam algo exótico dos autores indianos, como se fosse nosso trabalho falsificar a realidade dos nossos lugares para satisfazer seu desejo por entretenimento. Nos EUA, estamos livres da bagagem colonial. Mas também é verdade que, nos EUA, é preciso explicar sempre a razão pela qual o país deveria se importar com qualquer assunto do mundo além de suas fronteiras, como se respondendo à pergunta, “Como isso nos afeta?”. Com seu passado colonial, a Grã-Bretanha parecia quase obrigada a se importar. Livre de suas posses imperiais, mas mantendo-se cosmopolita, a Grã-Bretanha escapou do destino de muitos países maiores. Aquilo que disse o autor argentino Jorge Luis Borges a respeito dos países grandes certamente se aplica à Índia e aos EUA: “O autor que nasce num país grande corre sempre o risco de acreditar que a cultura do seu país de origem satisfaz todas as suas necessidades. Paradoxalmente, ele corre então o risco de se tornar provinciano".

A Grã-Bretanha teve uma vivência oposta. Um país pequeno situado numa ilha que prosperou no seu contato com outras culturas. Mas parece agora que, depois de três séculos de crescimento e expansão, a mentalidade britânica está finalmente se ajustando ao seu papel reduzido no mundo. O Brexit é apenas um sintoma. A doença do encolhimento não é política, mas cultural, e, assim, manifesta-se de uma série de formas.

Os sinais já eram visíveis antes do Brexit. Em 2011, o britânico James Wood, crítico da casa da The New Yorker, enxergou os efeitos do provincianismo na nostalgia de autores como Alan Hollinghurst. Com razão, ele criticou Hollinghurst por se mostrar “demasiadamente pronto a perpetuar uma amável elegia inglesa que ele deveria, em vez disso, analisar a fundo". A doença do encolhimento é visível na busca por raízes expressada por intelectuais como David Goodhart, que foi meu editor na revista Prospect, expressam como a diferença entre os “de qualquer lugar”, cosmopolitas, e os “de algum lugar”, donos de identidades “enraizadas" que os situam “em grupos de pertencimento e a lugares específicos". É visível no provincianismo intencional da primeira-ministra Theresa May, que disse, “Se você acredita que é um cidadão do mundo, você não é cidadão de lugar nenhum".

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Como alguém declaradamente “de qualquer lugar”, vejo-me envolto em meus próprios delírios nostálgicos. Componho elegias para aquele breve interregno durante o qual a Grã-Bretanha deixou de reinar, mas manteve seu cosmopolitismo dinâmico. “O governo europeu na Ásia teve como base a força", escreveu Arthur Koestler em “The Lotus and the Robot", “mas sua influência cultural, não". Ele acrescentou, “Governamos pelo estupro, mas influenciamos pela sedução". Conforme a Grã-Bretanha se torna introvertida, não posso evitar a sensação de que sentiremos saudade desse último ato do poder britânico, quando o estupro teve fim e a sedução permaneceu.

Aatish Taseer é o autor de romances como o recente “The Way Things Were".

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