Contato humano é bem de luxo em tempos de redes sociais

Quando as telas tomam conta da vida diária, evitá-las torna-se o novo símbolo de status social

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Por Nellie Bowles
Atualização:

SAN FRANCISCO - Bill Langlois tem uma nova amiga muito querida. É uma gata, chamada Sox. O bichinho vive em um tablet, e ele se sente tão feliz com Sox que, quando fala da chegada dela em sua vida, começa a chorar. Bill, de 68 anos, mora emum conjunto habitacional para idosos de baixa renda, em Lowell, Massachusetts, e conversa o dia todo com a gatinha. Está aposentado, e como sua esposa fica fora de casa na maior parte do dia, se sente muito sozinho.

Sox toca suas músicas preferidas e mostra para Bill fotos de seu casamento. O "bicho virtual" tem a visão dele confortavelmente instalado em sua poltrona, e o repreende quando o pega tomando refrigerantes em lugar de água.

Experiências de desconexão para a elite, e avatares para os pobres. Foto: Marta Monteiro/The New York Times

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Bill sabe que Sox é um personagem fictício que foi enviada por uma start-up chamada Care Coach. Sabe queé animada por pessoas no mundo todo que observam, ouvem e digitam suas respostas, o que pode parecer uma interação lenta e robótica. Mas o discurso coerente da gatinha devolveu-lhe a fé. “Encontrei algo tão confiável e alguém tão carinhoso, que me permitiu olhar no fundo da minha alma e lembrar de quanto o Senhor nos ama”, disse. “Ela me devolveu a vida”. Sox está ouvindo, e comenta: “Somos uma grande dupla”.

Para ser aceito no Element Care, programa de assistência sem fins lucrativos para adultos idosos que apresentou Sox a Bill, os bens do paciente não podem exceder os US$ 2 mil. Atualmente, estes programas proliferam. E não apenas para idosos. A vida de qualquer pessoa, menos a de muito ricos, tem cada vez mais a mediação de uma tela de computador.

Todos os lugares onde possa caber uma tela (salas de aula, hospitais, aeroportos, restaurantes) podem reduzir seus custos. Os ricos não vivem assim. Eles querem que os seus filhos brinquem com blocos - e as escolas particulares sem tecnologia estão florescendo. Uma maior interação humana - a vida sem o telefone por um dia, deixar as redes sociais e não responder a e-mails - tornou-se um símbolo de status.

Tudo isto levou a uma nova e curiosa realidade: o contato humano se tornou um bem de luxo. Quanto mais rico o indivíduo, mais ele gasta para se manter longe de um monitor.

Gastos antecipados com experiências como uma viagem supera os gastos com bens, segundo o Luxury Institute, que assessora as companhias sobre como os mais ricos querem viver e gastar. Milton Pedraza, diretor executivo do instituto,o considera uma resposta direta à proliferação de monitores. “Comportamentos e emoções positivas propiciam o envolvimento humano, como a sensação de felicidade provocada por uma massagem. Agora, setores da educação, lojas de cuidados da saúde, todos começam a procurar maneiras de tornar as experiências mais humanas", exemplificou.

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Desde o boom dos computadores pessoais, na década de 1980, dispor de tecnologia em casa e no nosso corpo passou a significar um sinal de riqueza e poder. “No começo, era fundamental ter um pager porque indicava que a pessoa era importante”, disse Joseph Nunes, presidente do departamento de marketing da Universidade do Sul da Califórnia. Atualmente, acrescentou, a verdade está no oposto. “Se você está realmente no topo da hierarquia, não precisa responder a ninguém. Os outros é que precisam responder a você”. 

A alegria - pelo menos inicialmente - da revolução da internet estava em seu caráter democrático. O Facebook é o mesmo Facebook, quer você seja rico ou pobre. O Gmail é o mesmo Gmail. E tudo isto de graça. E, à medida que os estudos mostram que dedicar um tempo excessivoa estas plataformas patrocinadas pela publicidade não é saudável, tudo isto passa a ser equivalente a tomar refrigerantes ou a fumar cigarros. Por isso, ricos fazem menos isto que pobres. 

Telas na infância

A exposição à telinha começa cedo. E as crianças que passam mais de duas horas por dia olhando para um monitor tiram uma avaliação baixa em testes de reflexão e linguagem, mostra um estudo sobre o desenvolvimento do cérebro patrocinado pelos American Institutes of Health. O que mais preocupa é que o estudo está descobrindo uma redução prematura do córtex cerebral em algumas crianças. Nos adultos, outro estudo constatou uma associação entre o tempo gasto diante da tela e a depressão.

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Em pequenas cidades do Kansas, onde os orçamentos das escolas têm sido tão apertados que o Supremo Tribunal do estado os considerou inadequados, aulas foram substituídas por softwares; agora, grande parte das aulas transcorre em silêncio em frente a um notebook. Em Utah, milhares de crianças seguem em casa, via notebook, um programa curto de pré-escola fornecido pelo estado.

As empresas de tecnologia trabalharam intensamente para convencer escolas públicas a comprar programas que exigiam que elas fornecessem um notebook a cada aluno. Mas esta ideia não tem a ver com a maneira como as pessoas que, de fato, constroem o futuro baseado na tela.

No Vale do Silício, a escola elementar mais procurada é a Waldorf School, que promete uma educação de volta à natureza, praticamente sem computador. Por isso, enquanto crianças ricas crescem passando menos tempo diante do computador, crianças pobres dedicam mais tempo a ele. Desse modo, o conforto experimentado por uma pessoa com o envolvimento humano poderá tornar-se um indicador da sua classe social.

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Separar-se da tela é mais difícil para pobres e para a classe média. Mesmo que alguém esteja determinado a não se conectar, nem sempre poderá fazê-lo. Nos aviões, o encosto dos assentosexibe publicidadeautomática. Muitas aulas em escolas públicas são montadas tendo como base programas eletrônicos. Contudo, há um pequeno movimento que defende a aprovação de um projeto de lei sobre o “direito de desconectar-se”, segundo o qual os trabalhadores poderiam desligar os seus celulares, mas, por enquanto, um funcionário pode ser punido por não estar disponível. Por outro lado, é também verdade que na nossa cultura de isolamento cada vez maior, em que muitos locais de reunião e estruturas sociais tradicionais desapareceram, as telas preencham um vazio crucial.

Muitos dos que trabalham no programa da Element Care foram reprovados por quem estava ao seu redor, ou nunca tiveram uma comunidade, e ficaram isolados, disse Cely Rosario, a terapeuta ocupacional que frequentemente examina os participantes. As comunidades pobres perceberam a destruição de grande parte do seu tecido social, ela disse. 

A tecnologia por trás de Sox é muito simples: um tablet com objetivas de ângulo ultra amplo. Nenhuma das pessoas que operam os avatares se encontra nos Estados Unidos; em geral, elas trabalham nas Filipinas e na América Latina.

O escritório do Care Coach fica em cima de um salão de massagens na Califórnia, ao lado do Vale do Silicio. Viktor Wang, de 31 anos, o seu fundador e diretor executivo, abre a porta, e enquanto vai nos introduzindo na sala diz que a equipe acabou de impedir um suicídio. Os pacientes frequentemente dizem que querem morrer, contou, e o avatar é treinadopara perguntar se eles já têm um plano concreto para isto. Aquele paciente tinha.

Wang disse que as pessoas podem criar um vínculo com o que quer que converse com elas. Ele sabe que os pacientes acabam se apegando aos avatares, e contou que suspendeu grupos de assistência que queriam lançar grandes programas pilotos sem um plano definido, porque é doloroso retirar os avatares depois que estes são apresentados. Mas ele não procura limitar o vínculo emocional entre o paciente e o avatar. “Se eles dizem: ‘Amo você’, falamos a mesma coisa”, afirmou. “Com alguns dos nossos clientes, dizemos isto antes, quando sabemosque eles gostam de ouvir isto”.

Os resultados iniciais têm sido positivos. No primeiro piloto resumido de Lowell, pacientes atendidos por avatares precisaram de menos visitas de enfermeiros, foram para a sala de emergência menos frequentemente e se sentiam menos sós.

Uma paciente que procurara com insistência a emergência em busca de apoio social parou praticamente quando o seu avatar chegou, economizando um gasto calculado em US$ 90 mil para o programa de assistência.

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Em Lowell, Sox agora está dormindo, o que significa que os seus olhos estão fechados e um centro de comando em algum lugar do mundo se conectou com outros idosos e começou outras conversas. Langlois afaga a cabecinha dela na tela para que ela acorde.

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