Esses satélites espionaram os soviéticos. Agora solucionam mistérios ecológicos

As imagens dos satélites Corona, da Guerra Fria, estão ajudando os cientistas a descobrir como mudamos nosso planeta na última metade do século

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Por Marion Renault
Atualização:

Não conseguir ver a floresta por causa das árvores não é só uma força de expressão para Mihai Nita – é uma desvantagem profissional. “Quando entro na floresta, só consigo ver uns cem metros ao meu redor”, disse Nita, engenheiro florestal da Universidade Transilvânia de Brasov, na Romênia.

O objeto de pesquisa de Nita – a história das florestas da Europa oriental – depende de um ponto de vista mais vasto e remoto do que os olhos conseguem proporcionar. “Você tem que ver o que aconteceu nos anos 1950, ou até mesmo um século atrás”, disse Nita. “Precisávamos de um olho no céu”.

Uma imagem de satélite de uma barragem na Turquia construída entre 1995 e 2001. Foto: SILVIS Lab University of Wisconsin-Madison/The New York Times

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Para mapear a história de uma paisagem, engenheiros florestais como Nita por muito tempo dependeram de mapas e inventários de árvores tradicionais, os quais podiam estar crivados de imprecisões. Mas agora eles têm uma visão panorâmica, produto de um programa de espionagem americano do século 20: o projeto Corona, que nas décadas de 1960 e 1970 lançou satélites secretos para perscrutar os segredos dos militares soviéticos. No processo, esses observadores orbitais reuniram aproximadamente 850 mil imagens que ficaram sob sigilo até meados da década de 1990.

Com o objetivo de historiar habitats preciosos ou perdidos, ecologistas deram uma segunda vida às imagens do Corona. Emparelhados com a computação moderna, os instantâneos vindos do espaço ajudaram arqueólogos a identificar locais antigos, demonstraram como as crateras deixadas pelas bombas americanas durante a Guerra do Vietnã se tornaram lagos de peixes e relataram a remodelação da cobertura florestal do Leste Europeu na Segunda Guerra Mundial.

Mesmo que sejam estáticas, as fotos panorâmicas contêm traços discerníveis – colônias de pinguins na Antártica, cupinzeiros na África e trilhas de pastagem de gado na Ásia Central – que revelam a vida dinâmica dos habitantes terrestres. “É o Google Earth em preto e branco”, disse Catalina Munteanu, biogeógrafa da Universidade Humboldt de Berlim, que usou as imagens do Corona para demonstrar que as marmotas voltavam às mesmas tocas ao longo de décadas de práticas agrícolas destrutivas no Cazaquistão.

Sistemas modernos como os satélites Terra, Aqua, Copernicus e Landsat fornecem aos cientistas ambientais imagens da superfície do planeta atualizadas regularmente. Mas esses satélites existem há apenas algumas décadas – quatro, no máximo – e muitos oferecem uma resolução menos detalhada do que as fotografias registradas pelo Corona.

Quatro imagens da primeira câmera de satélite do programa Corona. Foto: National Reconnaissance Office/The New York Times

Mais importante, com os satélites espiões, os cientistas podem estender a linha do tempo de uma paisagem para décadas anteriores no século 20. Isso, paradoxalmente, nos ajuda a prever o que vem a seguir.

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“Quando você duplica ou triplica a idade desse registro”, disse Chengquan Huang, geógrafo da Universidade de Maryland, “você consegue melhorar substancialmente sua habilidade de modelagem do futuro”.

Em 2019, por exemplo, um grupo de cientistas usou imagens do Corona, mapas históricos e satélites modernos para reconstituir os vários limites do Lago Phewa do Nepal ao longo do tempo. Depois, os pesquisadores previram o que pode acontecer daqui para frente, calculando que, cada vez menor, o lago pode perder 80% de sua água nos próximos 110 anos. Uma perda dessa magnitude devastaria a capacidade de o lago fornecer água para a geração de hidroeletricidade, a irrigação e as atividades turísticas das quais dependem centenas de milhares de pessoas no Nepal, observaram os cientistas.

“Podemos usar imagens do passado para projetar o futuro”, disse C. Scott Watson, geocientista da Universidade de Leeds e coautor do estudo sobre o Lago Phewa.

Um projeto que manteve fria a Guerra Fria

O programa do satélite espião Corona envolvia o lançamento de cápsulas no espaço, que tirariam fotos em órbita e cairiam de volta à Terra, para serem recuperadas no ar. Foto: National Reconnaissance Office/The New York Times

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No início da Guerra Fria, os Estados Unidos fizeram de tudo para adquirir inteligência militar sobre a União Soviética – um inimigo vasto, que abrange 11 fusos horários e 1/6 da superfície terrestre do planeta.

A exploração por satélite ofereceu um vislumbre da caixa preta soviética, disse James David, curador do Museu Nacional do Ar e Espaço em Washington. “A inteligência fotográfica informa onde estão as forças militares inimigas”, disse ele. “Pode ajudar muito a dizer quais equipamentos eles têm e qual é o seu estado de prontidão”.

Uma das primeiras respostas foi o programa Corona, aprovado pelo presidente Dwight D. Eisenhower em 1958. Mas, para fotografar o inimigo do espaço, as autoridades americanas primeiro tiveram de realizar proezas de engenharia: desenvolver um filme fotográfico que pudesse resistir à radiação espacial e à pressão do ar e depois ser recuperado, revelado e cuidadosamente analisado.

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A primeira dúzia de tentativas de lançamento de satélites Corona fracassou, de acordo com a CIA. Alguns dos veículos não conseguiram orbitar ou retornar, outros passaram por acidentes com as câmeras ou filmes.

Até que, em agosto de 1960, o primeiro voo bem-sucedido do Corona fez oito passagens diurnas sobre a União Soviética. Quando a câmera havia usado todos os 9 quilos de filme, o satélite lançou sua cápsula de retorno desde uma altitude de 160 quilômetros. O pacote atingiu a atmosfera, disparou um paraquedas e foi recolhido, no ar, por um avião da Força Aérea a noroeste do Havaí. Foram as primeiras fotografias recuperadas da órbita.

“Eles não tinham ideia se esses sistemas iriam funcionar”, disse Compton Tucker, cientista sênior no Goddard Space Flight Center da Nasa. “É realmente muito engenhoso”.

Com o tempo, as câmeras e filmes do Corona melhoraram em qualidade. Com um arquivo de quase 1 milhão de imagens, o programa detectou depósitos de mísseis, navios de guerra, bases navais e outros alvos militares soviéticos. “Eles contaram todos os foguetes da União Soviética”, disse Volker Radeloff, ecologista da Universidade de Wisconsin-Madison, cujo laboratório usou as imagens em seus estudos. “Essas imagens fizeram com que a Guerra Fria continuasse fria”.

Lançamento do programa Corona da Base da Força Aérea de Vandenberg na Califórnia. Foto: National Reconnaissance Office/The New York Times.

Depois de 145 missões e 120 caixas de filme, o multibilionário programa Corona foi desativado em 1972 e deu lugar a satélites que poderiam enviar suas imagens para a Terra em formato digital.

Em 1995, quando se levantou o sigilo das imagens de arquivo do programa de espionagem, algumas apareceram na primeira página do The New York Times.

Os funcionários do governo foram motivados a divulgar as imagens, em parte, por causa de seu valor para cientistas ambientais. “Esse tipo de fotografia”, disse o vice-presidente Al Gore na época, “é o que deixa o evento de hoje tão emocionante para aqueles que estudam o processo de mudança em nossa Terra”.

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Desde então, o programa permaneceu relativamente desconhecido do público. “É o melhor sucesso militar financiado pelo contribuinte que ninguém conhece”, disse Jason Ur, arqueólogo da Universidade de Harvard que sempre se vale das imagens do Corona para suas pesquisas.

Só nos últimos dois anos, os cientistas estudaram as imagens para rastrear os movimentos das geleiras rochosas na Ásia Central, as mudanças na costa da Arábia Saudita, as árvores wadi nos desertos do leste do Egito e o degelo no Peru.

“Uma máquina do tempo” para a superfície da Terra

Uma cápsula de retorno do filme Corona retorna à Terra para recuperação na década de 1960. Foto: National Reconnaissance Office/The New York Times.

Uma vez divulgadas, as fotos de espionagem do Corona podem revelar a história de uma paisagem além da era das imagens de satélite generalizadas. Muitas vezes, os instantâneos da era Corona dos anos 1960 capturavam habitats antes que os humanos drasticamente inundassem, pavimentassem, arassem ou desenvolvessem espaços selvagens em novas cidades, barragens hidrelétricas, terras agrícolas ou zonas industriais.

As imagens até desafiaram nossas suposições sobre ecossistemas intocados – revelando, mais de uma vez, que florestas supostamente antigas têm, na verdade, menos de 70 anos de idade.

“Em muitos casos, elas nos levam a paisagens que se foram, que não existem mais”, disse Ur. “Para nós, o Corona é uma máquina do tempo”.

Uma versão da primeira imagem de satélite de sucesso feita pelo programa Corona. Foto: National Reconnaissance Office/The New York Times

Ainda assim, os dados do Corona continuam relativamente inexplorados pelos cientistas. Só se digitalizaram até agora apenas 5% do acúmulo cada vez maior das fotografias de satélites espiões liberadas, disse Radeloff. “As coisas ainda não foram muito usadas. Estamos só no começo”, disse ele.

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Com as mudanças climáticas e outras transformações do ecossistema global, nunca foi tão importante registrar e reunir cronogramas ambientais de longo prazo, Muntenau disse: “Tudo o que fazemos deixa uma pegada. E pode ser que esse impacto só apareça depois de décadas”. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

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