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Prazer em conhecê-la, mãe. Agora vamos entrar em quarentena

Para os membros da maior diáspora de adotados do mundo, regressar ao país de nascimento era um rito de passagem - até que a pandemia do coronavírus mudou tudo

Por Bryan Pietsch
Atualização:

Quando um táxi deixou Mallory Guy na frente de um edifício de apartamentos em Cheonan, na Coreia do Sul, atordoada depois de uma viagem de 14 horas de Atlanta, nos Estados Unidos, um casal coreano a esperava na calçada de braços abertos.

Era a primeira vez desde que tinha sete meses de idade que Mallory, de 33 anos, voltava ao país onde nasceu. Era também a primeira vez que ela via seus pais biológicos desde que fora enviada para os Estados Unidos havia mais de trinta anos. Eles a entregaram para adoção porque não podiam pagar pela cirurgia reparadora da fenda palatina da criança.

Mallory Guy, terceiro a partir da esquerda, e sua família biológica extensa em Cheonan, Coreia do Sul em 5 de outubro de 2020. Foto: Jun Michael Park/The New York Times

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Mallory, que foi adotada por uma família de Mentor, Ohio, havia realizado o teste de DNA da empresa 23andMe em 2013, na esperança de encontrar informações a respeito de sua saúde. Anualmente, ela verificava o site, procurando uma possível conexão com sua família coreana. No final do ano passado, ela descobriu que combinava com um parente em Seattle.

“A mãe dela acha que sabe quem eu sou”, ela disse. “Se eu for quem eles pensam, sou sua sobrinha. E eles estavam me procurando”.

Cerca de 200 mil crianças coreanas foram mandadas para famílias no exterior desde os anos 1950, inicialmente para famílias brancas nos Estados Unidos, segundo Kelly Condit-Shrestha, uma historiadora de Minneapolis que estuda adoção. Elas constituem a maior diáspora de adotados do mundo, afirmou.

Nos últimos anos, as reuniões entre os adotados e seus pais biológicos ficaram mais comuns, graças ao abrandamento das leis sul-coreanas sobre privacidade, e também ao aumento do uso das redes sociais e dos testes genéticos.

Para alguns adotados, as reuniões tornaram-se um rito de passagem, que eles imaginaram e anteciparam desde que conseguem se lembrar, como um casamento ou o nascimento de um filho. Depois veio a pandemia de 2020. As peregrinações para a Coreia do Sul diminuíram. Muitos adotados cancelaram as reuniões há muito tempo planejadas depois que as normas oficiais sobre a quarentena para visitantes estrangeiros tornaram as viagens muito dispendiosas e todo o processo demorado.

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Mas Mallory persistiu. Sua reunião com os pais não seria uma conversa rápida em um café. Ela passaria 14 dias com eles em sua casa. Duas semanas, duas línguas, um apartamento.

Mallory Guy janta com sua família biológica no apartamento dos pais na Coreia do Sul. Foto: Jun Michael Park/The New York Times

A família coreana de Mallory pretendia visitá-la em Ohio em março, mas o vírus fez naufragar seus planos. No final do verão [do hemisfério norte], o restaurante onde ela trabalhava colocou os funcionários em férias coletivas.

“Este é provavelmente o melhor momento para fazer isto”, ela pensou. Em setembro, pegou um avião para a Coreia sozinha.

Quando Mallory chegou, não sabia se poderia passar as duas semanas na casa dos pais biológicos ou se seria obrigada a ficar em um hotel caro do governo. O site da Embaixada sul-coreana dizia apenas que estas decisões eram tomadas analisando caso a caso.

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No aeroporto, Mallory, que falava pouco coreano, mostrou um certificado que provava que ela era filha de uma família coreana. Os funcionários ligaram para o pai coreano a fim de confirmar a sua identidade.

Quando ela abraçou os pais na frente do seu edifício de apartamentos em Cheonan, a cerca de 80 quilômetros de Seul, não era mais a criancinha com a fenda palatina. Mas uma mulher feita com o lábio corrigido, um marido americano e dois filhos.

Reunidos por um teste genético, um voo intercontinental e uma pandemia, Mallory e os pais subiram quatro andares até o modesto apartamento de três quartos onde passaria as suas duas primeiras semanas. A barreira da língua pareceu enorme.

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"Entrei em pânico por dentro”, ela disse.

Mas os seus temores eram infundados. Eles assistiram aos programas da Netflix juntos, rindo dos momentos de humor, independentemente da língua.

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Seus pais prepararam comida coreana para ela e lanches americanos com manteiga de amendoim e geleia. (Também estocaram leite, porque haviam ouvido dizer que os americanos adoram leite). Até compraram uma bicicleta para ela se exercitar, porque contara para eles em alguns telefonemas que gostava de usar a sua.

“Eu não precisei alimentar minha filha por 33 anos, então isto é o mínimo que posso fazer”, disse Lim Mi-soon, 59 anos, sua mãe biológica.

“Eles têm sido mais do que fantásticos”, disse Mallory em um telefonema dias depois de começar a quarentena, acrescentando que estava “agradecida por ficar ininterruptamente com os meus pais”.

As emoções cresceram enquanto ela folheava um álbum de fotos da família, com os irmãos coreanos de Mallory, um irmão e uma irmã. “Ver as fotos de todo mundo crescendo me fez perceber a falta que eu sentia deles”, afirmou.

Embora as lágrimas fossem principalmente uma reação ao ver “como eles são maravilhosos e o que poderia ter sido comigo”, disse Mallory, sua mãe ficou temerosa de que ela pudesse ficar aborrecida por ver as fotografias.

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“Foi difícil dizer a ela por meio de um intérprete que eu não estava aborrecida”, ela disse.

‘Uma experiência muito boa apesar de triste”

A volta de Mallory para casa não foi absolutamente normal. As reuniões entre os pais de sangue e os seus filhos às vezes são formais demais, tolhidas pela barreira da língua e pelo estilo burocrático das agências de adoção. Frequentemente ocorrem em restaurantes ou em um café, não muito diferentes de um encontro às cegas. As conversas muito emocionadas - desculpas e choros dos pais, por exemplo, ou as palavras tranquilizadoras do filho - precisam ser filtradas por um intérprete.

De certo modo, a pandemia mudou tudo isto para melhor. Kelsey Krantz, 33 anos, uma adotada de Mound, Minnesota, disse que acabou quase se tornando uma ‘bênção’, apesar de termos esperado tanto”.

Kelsey Krantz recentemente encontrou sua família biológica e planejava encontrá-la na Coreia do Sul. Foto: Caroline Yang/The New York Times

Ela criou um relacionamento com sua família biológica por meio de chamadas de vídeo e conversas diárias no aplicativo Line, que é popular na Coreia do Sul e traduz as mensagens.

“Nós conversamos tanto que agora nos conhecemos muito mais intimamente”, afirmou, acrescentando que esperara que não seja estranho quando finalmente os conhecer pessoalmente.

Kelsey Krantz e seu pai, Alan, planejavam ir para a Coreia do Sul no início de 2020. Depois da morte de sua esposa, em 2018, Alan Krantz disse à filha que iriam fazer essa viagem.

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Como muitos pais adotivos, Alam apoiou muito a sua busca. “Nós nunca nos sentimos ameaçados por seus pais biológicos”, observou. “E nem me sinto menos ligado a ela por causa deste processo”.

Mas o cancelamento da reunião planejada pode ser particularmente devastador para alguém que se dedicou tanto a uma busca dispendiosa e emocionalmente desgastante. “Alguns adotados levam anos para se sentirem prontos a cada busca - até mesmo para preencherem a papelada", disse Christine Heimann, uma pessoa adotada que fundou a AdopteeBridge, uma ONG de Minnesota que promove excursões à Coreia do Sul. A organização adiou as viagens que tinham sido planejadas para o segundo semestre de 2020.

Embora algumas reuniões pareçam casamentos, também podem ser vivenciadas como um funeral adiado. É que todas as adoções começam com a perda, disse Christine: a perda de uma família, de uma cultura, de um país.

Às vezes, as reuniões são mais práticas do que emocionais. Elas representam para os adotados a chance de confirmar pela primeira vez datas de nascimento e fazer perguntas sobre antecedentes médicos. E é também a primeira vez em que muitos adotados veem seu nariz, mãos ou olhos refletidos em outra pessoa. / TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA

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