Criador de fragrância ousa sentir 'o verdadeiro aroma da vida'

Desenvolvendo aromas que demandam um nariz valente, e conduzindo excursões aromáticas por uma paisagem na Catalunha pintada por Dalí, um evangelista do odor incita as pessoas a sentirem o cheiro do 'sublime'

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Por Nicholas Casey
Atualização:

CABO DE CREUS, ESPANHA - De todos aqueles esperando um rápido fim para a pandemia, poucos têm razões tão obsessivas com o olfato como Ernesto Collado, um ator que virou criador de fragrâncias e cuja oficina fica em um vilarejo no nordeste da Espanha.

Ernesto Collado, ator que se tornou perfumista e evangelista do cheiro. Foto: Samuel Aranda/The New York Times

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A pandemia trouxe as máscaras, o que tirou da humanidade sua capacidade de sentir aromas, “o sublime que está exatamente aqui”, como Collado costuma dizer. E o vírus lhe trouxe a possibilidade de perder completamente o olfato, o que realmente aconteceu brevemente há anos atrás e provocou uma espécie de crise existencial.

E havia ainda o futuro de suas excursões aromáticas, das quais foi pioneiro em sua nativa Catalunha e que, por um tempo, também pareciam ameaçadas.

Agora as excursões voltaram e Collado esteve recentemente com um grupo que o seguiu até o topo de uma colina em Cabo de Creus, um promontório rochoso acima de um mar azul escuro cerca de 24 quilômetros ao sul da França. Eles pararam em um arbusto de alecrim selvagem onde ele esmagou um ramo com as mãos e pediu que os visitantes inalassem.

“O aroma conversa diretamente com suas emoções, você começa a chorar e não sabe por que”, Collado explicou enquanto os outros se aproximavam. “O olfato tem um poder que nenhum dos outros sentidos tem, e tenho que lhes dizer, é molecular, vai para a essência da essência”.

Collado apontou para o homem ao seu lado. Subitamente uma brisa quente dos penhascos movimentou milhões de moléculas entre eles.

Quando sinto o cheiro dele, na verdade, estou entrando em um nível de intimidade mais intenso que se tivéssemos dormido juntos na cama”, ele disse.

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A costa rochosa na qual o perfumista caminhou e filosofou é mais conhecida como o cenário das pinturas do surrealista Salvador Dalí, e Collado, a seu modo, também se vê como um artista liderando um movimento. Ele deseja recuperar o que chama de “cultura do olfato

O mundo não carece de aromas, Collado acredita. Mas carece de aromas autênticos. O perfume Chanel nº5 pretende evocar a rosa e o jasmim, mas também está misturado a componentes sintéticos. Poucas pessoas ainda conhecem o aroma real da baunilha, lamentou, conhecendo apenas aromas artificiais.

“Nunca tivemos tantas fragrâncias ao nosso redor”, Collado disse, durante uma tarde em sua casa. “Mas, ao mesmo tempo, não temos ideia do verdadeiro aroma da vida

Ernesto Collado durante um de seus passeios olfativos incentivando pessoas a cheirarem uma planta. Foto: Samuel Aranda/The New York Times

Para Collado, isso tem a ver com o fato de que, ao contrário do que ele chama de nossos sentidos mais “privilegiados”, como a visão e a audição, o olfato foi colocado de lado, “absolutamente rebaixado por séculos porque o cheiro nos lembra de que somos apenas animais”, ele disse.

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Ele começou a contar uma breve história dos cheiros: como a raiz da palavra perfume significa “fumaça” em Latim, uma referência, ele imagina, ao zimbro queimado pelos homens das cavernas; como a colonização do Novo Mundo inundou a Europa com os anteriormente desconhecidos aromas do chocolate e do café; e como os aromas encardidos de Londres e Paris durante a Revolução Industrial marcaram um ponto de virada.

“Aí veio essa súbita obsessão com esterilização e desinfecção”, ele disse, acrescentando, “agora todo mundo precisa ter um cheiro absolutamente neutro”.

Collado tentou criar aromas do mundo real em sua fábrica de fragrâncias, onde busca inspiração na natureza catalã. O nome de sua companhia, Bravanariz, tem o sentido de “nariz valente” em espanhol.

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Parte depósito, parte laboratório, fica no andar inferior de sua casa em um vilarejo pedregoso, Pontós, no norte de Barcelona. Há frascos de colônia e tinas de líquidos oleosos - mas, por favor, não chame nada de “perfume”.

“São capturas olfativas”, disse Collado, inalando.

Se Dalí pintou relógios que derretem com essas mesmas paisagens como pano de fundo, Collado fez do aroma deste cenário seu tema. Ele colhe a esteva, um arbusto mediterrâneo com folhas verdes e pétalas brancas. Ele faz uma tinta a partir do funcho marinho, uma planta comestível que tem um sabor salgado lembrando o oceano.

Ele mistura esses e outros aromas para produzir Cala, uma fragrância que vende.

Collado cresceu ouvindo histórias sobre perfumes de seu avô, José Collado Herrero, que formulou alguns dos perfumes mais vendidos na Espanha no começo do século XX. Mas Collado fez primeiro seu nome como ator na televisão espanhola e como um diretor de teatro.

Perfumista Ernesto Collado trabalhando em uma fragrência em seu porão. Foto: Samuel Aranda/The New York Times

A mudança veio quando Collado desenvolveu fantosmia, uma condição também conhecida como alucinação olfatória. Ele perdeu sua capacidade de sentir cheiros exceto por um único e desagradável aroma que parecia pairar sobre tudo, até mesmo sobre seus filhos.

Collado foi informado de que teria que reaprender a sentir os cheiros na prática, assim como um paciente com derrame precisa reaprender a falar.

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Ele começou com um ramo de alecrim.

“Por duas ou três semanas não sentia nada”, ele disse. “Então um dia o cheiro chegou ao meu cérebro, e voltei imediatamente à infância, foi como se alguém me desse um tapa na cara”

Collado começou a treinar para sentir os cheiros das outras plantas ao redor de sua casa. Foi o começo de uma obsessão que o levou não apenas a misturar suas próprias fragrâncias, mas a tornar-se uma espécie de evangelista do próprio nariz.

Sua abordagem é exatamente o oposto do que a maioria dos perfumistas faz, ele disse. Eles isolam aromas, fazendo algo artificial. Ele os combina, abraçando os estranhos aromas de tudo.

“Eu faço isso porque não há nada mais complexo que a natureza”, ele disse. “Deveríamos ser complexos, mas temos problemas em aceitar a complexidade e a contradição em nós mesmos”. / TRADUÇÃO DE LÍVIA BUELONI GONÇALVES

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