Crise de suicídios preocupa interior da Austrália

A crise parece se agravar num momento em que a economia rural apresenta sinais de força

PUBLICIDADE

Por Jacqueline Williams
Atualização:

SIMPSON, AUSTRÁLIA - James Guy era fazendeiro e trabalhava com laticínios desde os 15 anos; aos 55, imaginou que estaria se preparando para a aposentadoria. Em vez disso, viu-se com dificuldades para quitar o pagamento de um empréstimo bancário depois que o preço do leite caiu.

PUBLICIDADE

Certa noite, em novembro de 2016, a mulher dele, Mary, que trabalhava meio período como enfermeira, voltou para casa e descobriu que ele tinha se enforcado.

“Quando um fazendeiro se vê diante da necessidade de vender a fazenda ou perdê-la, abandonando a profissão à qual se dedicou a vida toda, o efeito é devastador", disse Mary, com a voz trêmula, em sua casa de campo em Simpson, cidade localizada em Victoria, onde se produz a maior parte do leite da Austrália. “Eles simplesmente perdem a identidade”.

Fazendas administradas por famílias como a propriedade de Guy são as produtoras da prosperidade agrícola da Austrália, e o alicerce da imagem de país de gente independente que cria os próprios meios de sobrevivência a partir de um vasto continente. Mas como a prosperidade rural da Austrália veio na esteira das crescentes exportações, os pequenos produtores nem sempre partilham da recompensa e muitos são obrigados a tomar empréstimos ou vender suas propriedades.

O custo emocional desse prejuízo se tornou visível numa crise de saúde mental que avança lentamente nas regiões rurais, observada principalmente no crescente número de suicídios.

O marido de Mary Guy, o fazendeiro James Guy, não suportou a pressão para vender a fazenda a fim de pagar empréstimos bancários. Foto: Adam Ferguson para The New York Times

No país como um todo, são registrados agora duas vezes mais suicídios entre as pessoas que vivem nas regiões remotas da Austrália do que entre os habitantes urbanos: a cada ano, há cerca de 20 suicídios a cada 100 mil habitantes nas áreas rurais isoladas, enquanto as comunidades urbanas registram dez suicídios por grupo semelhante, de acordo com estudos independentes dos dados locais de saúde.

Pesquisas mostram que os agricultores estão entre aqueles que apresentam maior risco de suicídio. No estado de Queensland, estudos revelaram que os agricultores apresentam probabilidade duas vezes maior de tirar a própria vida do que a população em geral. Nas partes remotas do estado, a proporção de suicídios entre os agricultores era cinco vezes maior do que entre os não agricultores.

Publicidade

“Há uma crise de saúde mental no interior da Austrália", disse Hugh van Cuylenburg, diretor fundador do Resilience Project, uma organização que promove a saúde mental. Ele acrescentou que a situação tinha adquirido “proporções epidêmicas".

O problema dos suicídios nas zonas rurais não é exclusividade da Austrália. Em países tão diferentes quanto Índia e França, os agricultores também estão acabando com as próprias vidas.

Na zona rural da Austrália, as causas da crise variam. Algumas regiões agrícolas foram golpeadas pela seca. Outras comunidades precisam desesperadamente de trabalhadores e buscam a ajuda de imigrantes.

E a crise parece estar se agravando num momento em que a economia rural apresenta sinais de força. As exportações agrícolas australianas estão crescendo. No passado, chegaram a um total de 44,8 bilhões de dólares australianos, ou US$ 33,5 bilhões, alta de mais de 20% num período de seis anos, segundo a Federação Nacional de Agricultores.

PUBLICIDADE

Mas muitos especialistas dizem que os principais beneficiados são as grandes fazendas industriais. Muitas famílias se veem menos capazes de lidar com as flutuações de preço nos mercados globais. 

O problema é agravado pela dificuldade em obter ajuda. Contando apenas com um pequeno número de centros de saúde mental e profissionais treinados espalhados pelas áreas rurais do continente, os moradores dispõem de poucos recursos se comparados aos residentes urbanos.

“Se os serviços de prevenção e tratamento chegassem a eles mais cedo, teríamos menos mortes", disse Martin Laverty, diretor-executivo do Royal Flying Doctor Service, serviço do governo para ampliar o acesso ao atendimento de saúde nas áreas rurais.

Publicidade

O serviço usa pequenos aviões para cobrir mais de 7 milhões de quilômetros quadrados das zonas rurais mais afastadas da Austrália, transportando médicos e outros profissionais por via aérea. Laverty explicou que o serviço oferecia atendimento de saúde mental a quase 25 mil pessoas. Novos recursos federais permitirão que esse número seja triplicado no ano que vem.

“Não existe assunto mais importante", disse Laverty. "Precisamos conscientizar as pessoas da cidade de o prato de comida da Austrália - ou seja, a área em que nossas plantações crescem e de onde vêm a carne e o leite - precisa de ajuda".

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.