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Diplomacia do futebol ajuda a amenizar tensões no Golfo Pérsico

Por mais de dois anos, a Arábia Saudita e seus aliados travaram uma guerra econômica contra o Catar. Mas algumas coisas são mais importantes que a política

Por Declan Walsh
Atualização:

DOHA, CATAR - Para chegar à partida, o torcedor saudita recorreu a medidas incomuns. Primeiro, viajou de avião até o Kuwait, onde disse aos pais que passaria as férias. Então embarcou em um voo para o Catar, que recebeu esse mês um importante torneio de futebol. Oficialmente, a jornada era proibida: faz mais de dois anos que a Arábia Saudita lidera um rigoroso embargo diplomático e comercial contra o Catar, e os sauditas são proibidos de visitar o país.

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Mas o subterfúgio empregado pelo torcedor, Majed al-Qahtani, 29 anos, revelou-se desnecessário. O amargo impasse no Golfo Pérsico foi aliviado nas semanas mais recentes em meio a uma rodada de negociações de paz entre lideranças sauditas e catarianas. Ao chegar ao Catar, al-Qahtani encontrou centenas de outros torcedores sauditas, todos convivendo harmoniosamente com seus anfitriões catarianos, com a aparente ciência do seu governo - o mais visível indício até o momento de um recente degelo entre os dois países ricos em petróleo.

“O conflito é um problema entre os governos", disse ele. “Acredite, não há inimizade entre as pessoas comuns. Somos irmãos.” Autoridades sauditas e catarianas deram início a negociações para por fim ao embargo, que impede os aviões catarianos de sobrevoar os vizinhos do Golfo e mantém fechada a única fronteira terrestre do país, com a Arábia Saudita.

Especialistas no Golfo e representantes ocidentais especulam a respeito das concessões em negociação. “Esperamos que isso chegue ao fim logo, talvez em um par de meses", disse Saud Khalid, paramédico saudita de 25 anos, que estava no Estádio Internacional Khalifa, em Doha. “O clima em ambos os países está ficando mais otimista.”

Atrás dele, outro torcedor saudita se levantou com um salto e ergueu uma bandeira saudita, cena que seria impensável no Catar há menos de um ano. O futebol e a diplomacia andam de mãos dadas no Golfo, onde o esporte se tornou um conduíte para as ambições, diferenças políticas e intrigas entre governantes rivais da região. Às vezes as paixões políticas transbordavam para o gramado. Quando o Catar enfrentou os Emirados Árabes Unidos em janeiro, pela Copa da Ásia, torcedores emiradenses arremessaram seus sapatos contra jogadores catarianos quando estes comemoravam um gol.

Em setembro, a Fifa disse ter provas de que uma empresa saudita teria pirateado as transmissões da beIN Sports, empresa estatal saudita que gastou milhões de dólares para obter os direitos exclusivos de transmissão das principais partidas de futebol do Oriente Médio.

Jogadores do time saudita Al Hilal comemoram gol durante o Mundial de Clubes, realizado este mês no Catar. Foto: Ibraheem Al Omari/Reuters

O furor envolvendo o serviço saudita, conhecido como beoutQ, chegou ao auge em 2018 quando o canal roubou e transmitiu a Copa do Mundo no Oriente Médio, custando à empresa catariana uma fortuna em receita perdida. Quando a Fifa tentou processar a beoutQ nos tribunais sauditas, foi impossível encontrar um advogado saudita disposto a representá-la nos tribunais sauditas.

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O recente torneio de futebol no Catar, Mundial de Clubes, é uma espécie de ensaio para a iniciativa do país de receber a Copa do Mundo de 2022 - uma jogada imensa para um pequeno país de 300 mil habitantes, demonstrando sua ambição de usar a imensa fartura em gás para projetar sua imagem no palco global. Inevitavelmente, o campeonato de 2022 foi envolvido no confronto entre o Catar e seus vizinhos maiores.

Após o início da crise regional, em 2017, com os inimigos do Catar acusando o país de financiar o terrorismo e interferir nos seus assuntos domésticos (acusações que o Catar nega), ministros emiradenses pediram à FIFA que transferisse a Copa do Mundo para fora do Catar.

Em Londres, campanhas de lobby generosas ligadas aos rivais do Catar deram início a uma campanha que amplificou a preocupação com os direitos dos trabalhadores no Catar, bem como acusações de que autoridades catarianas teriam distribuído subornos para ficar com o direito de receber a Copa do Mundo.

Recentemente, com o início do relaxamento das tensões, a mudança foi visível no campo. O degelo teve início em outubro, quando Arábia Saudita, Emirados Árabes e Bahrein permitiram que suas seleções viajassem ao Catar para disputar a Copa do Golfo da Arábia. Quando a Arábia Saudita venceu o Catar por 1 a 0, nenhum sapato foi arremessado. Quando o Bahrein se sagrou campeão, o emir do Catar presenteou a seleção com a taça.

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Depois de chegar ao Catar, al-Qahtani e o amigo se misturaram aos locais em Souk Wakif, distrito popular no centro de Doha com cafés de alto padrão, falcoeiros e edifícios decorados com retratos gigantes do emir do Catar, xeque Tamim bin Hamad al-Thani. Fizeram amizade com um catariano de 19 anos, Tamim al-Marri, que os convidou para um café, e então os levou para casa para uma refeição.

“São nossos primos, nossos irmãos", disse al-Marri, recruta do exército. Ainda que a presença deles no Catar fosse tecnicamente ilegal, os dois sauditas não estavam preocupados com eventuais repercussões na volta. “Posso contar que fui torcer pelo meu time, Al Hilal, no Mundial de Clubes", disse al-Anqari. Eles disseram que contariam a verdade a suas famílias quando voltassem para casa. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

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