Documentário mostra orquestra com músicos portadores de doença mental

A música “tira a parte cognitiva do caminho e envolve a parte intuitiva, a parte do cérebro que não está danificada”, diz um terapeuta

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Por Jane E. Brody
Atualização:

Ronald Braunstein estava destinado a uma excelente carreira como regente de música clássica quando foi abruptamente acometido por uma doença mental. Graduado pela Juilliard School, Braunstein fez sua estreia no Lincoln Center aos 20 anos, e três anos depois se tornou o primeiro americano a vencer a prestigiosa Competição Internacional de Regência Herbert von Karajan, os chamados Jogos Olímpicos da Regência.

O prêmio gerou convites para reger grandes orquestras e, segundo ele, no começo, qualquer coisa que fazia "virava ouro". Mas tudo parou quando sua vida emocional desmoronou. Como relembra em "Orchestrating Change" (Orquestrando a mudança, em tradução livre), um novo documentário inspirador sobre seu trabalho com músicos portadores de alguma doença mental, Braunstein percebeu, ainda garoto, que algo dentro dele não estava certo.

Gracia Lam/The New York Times 

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"Eu ficava muito animado e depois muito, muito triste", disse. Mas foi só aos 30 anos, quando uma crise emocional paralisante conduziu ao diagnóstico de transtorno bipolar, que ele descobriu qual era seu problema. "Foi um período muito sombrio e ninguém me ajudou. Todos da indústria me abandonaram", revelou Braunstein sobre o período posterior ao diagnóstico.

Mesmo assim, ele estava determinado a reger, e acabou sendo contratado por Caroline Whiddon, então diretora executiva de uma orquestra em Burlington, no estado de Vermont, cuja própria carreira como trompista fora posta de lado por incapacitantes ataques de pânico, ansiedade e depressão.

Embora tomasse uma medicação para o transtorno bipolar, Braunstein não durou um ano no trabalho antes de se desestruturar emocionalmente mais uma vez. Depois de se estabilizar do ponto de vista médico, ele propôs que, em vez de ser julgado e discriminado, formasse sua própria orquestra, na qual pudesse ser ele próprio e recrutar pessoas como ele, explicou Whiddon, que nessa época já tinha se tornado sua esposa.

Juntos, eles criaram um veículo de performances – a Me2/Orchestra, que é instruída e regida por ele –, que fornece apoio irrestrito e uma vida nova a instrumentistas jovens que padecem de algum problema mental. Vários participantes conseguiram desenvolver uma carreira mais convencional na música.

"Nunca pensei que uma orquestra pudesse ser um veículo de mudança", disse Whiddon. A orquestra, na qual qualquer pessoa com ou sem doença mental pode ingressar, agora conta com três filiais, uma em Burlington, outra em Boston e uma terceira em Manchester, no estado de New Hampshire, além de duas orquestras de câmara em Portland, no Oregon, e em Portland, no Maine.

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A expansão exigiu a contratação de mais pessoas que compartilham a filosofia de Braunstein, entre elas uma regente da orquestra de Burlington, Kim Diehnelt, que foi diagnosticada com autismo depois de muitos anos se perguntando por que nunca conseguia se encaixar no trabalho.

Os grupos são convidados a se apresentar em diversos locais, incluindo escolas, hospitais, centros de recuperação e prisões, bem como na South Station de Boston no aniversário de Bach. Whiddon explicou que, além do valor dos ingressos das apresentações, os grupos da Me2 recebem doações de pessoas físicas, de empresas, de fundações e do Departamento de Saúde Mental de Massachusetts. A descrição da vida de Braunstein e do trabalho gratificante que ele agora realiza com pessoas marginalizadas é uma mensagem pungente de que pessoas com doença mental não devem ser estigmatizadas.

Em vez de confiná-las a uma existência muito restrita com medicamentos pesados que retiram delas e de sua família qualquer esperança de uma vida gratificante, é preciso encontrar maneiras criativas de envolvê-las em atividades que capitalizem seu talento. Braunstein e Whiddon foram convidados a descrever seu trabalho em uma reunião do Kennedy Forum, evento fundado em 2013 por Patrick J. Kennedy, filho do senador americano Edward M. Kennedy, que visa promover melhores tratamentos, políticas e programas para pessoas que têm doença mental e sofrem de dependência química.

Kennedy, ex-deputado de Rhode Island, que abandonou a política depois de ser diagnosticado com transtorno bipolar e por sofrer de dependência química, declarou ao fórum que a mensagem que a Me2 havia criado por meio de sua orquestra era "o tipo de recado poderoso que precisamos dar para que a sociedade mude a atitude em relação a esse tipo de doença e às pessoas que sofrem em consequência disso".

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Rick Soshensky, musicoterapeuta em Kingston, no estado de Nova York, que toca para pessoas com graves problemas de saúde mental, descreveu como a abordagem de Braunstein pode ajudar as pessoas com doença mental: "Ao contrário da comunicação verbal, a música envolve uma parte diferente do cérebro e uma maneira diferente de interagir com o mundo. Ela está fora do reino cognitivo. Deixa a parte cognitiva de lado e trabalha com a parte intuitiva, a parte do cérebro que não está danificada."

Para os músicos da Me2/Orchestra, Braunstein é mais do que um regente. É um amigo e um mentor, bem como um exemplo do que pode acontecer quando uma pessoa com uma doença mental é aceita de forma incondicional e tratada com dignidade e respeito. Para Soshensky, essa abordagem com pessoas que têm doença mental pode promover o crescimento e a autoestima que, em seguida, podem ser aplicados a outros aspectos da vida e promover uma experiência de vida mais plena.

"Isso faz com que as pessoas comecem a ver uma dimensão totalmente diferente da pessoa que não existia antes. Todos precisamos nos sentir bons em alguma coisa." É exatamente esse tipo de magia musical que Braunstein oferece aos membros da Me2/Orchestra. Por exemplo, Dylan, contrabaixista que aparece no filme, comentou que antes de entrar para a orquestra não saía de casa fazia meses. Ele também passara semanas sozinho na floresta, onde ouvia vozes.

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Embora tenha sido diagnosticado com esquizofrenia, costumava dizer às pessoas que era viciado em drogas, porque achava que isso era mais bem aceito do que ter uma doença mental. Sua mãe, Ann, contou que estar na orquestra mudou sua vida: "Foi uma salvação. Deu a ele algo que não havia antes". Ainda assim, a orquestra não é, de forma alguma, uma cura. Como Braunstein informou a outro membro da Me2 no filme, Marek, clarinetista que compartilha seu diagnóstico: "Não podemos curar o transtorno bipolar, mas podemos administrá-lo."

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