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Espanha recorre à reabilitação para funcionários corruptos que não conseguem parar de roubar

Trapaceiros e vigaristas há muito dominam as manchetes na Espanha. Agora, o país achou uma nova solução: um programa de reabilitação que visa 'reinserir' os funcionários corruptos na sociedade

Por Nicholas Casey
Atualização:

CÓRDOBA, Espanha – Carlos Albuquerque não é um candidato típico à reabilitação. Ele é um avô de 75 anos que vive em Córdoba, no sul da Espanha. Antes de aposentar-se, em 2015, ele era um tabelião. Há anos, ele não toca em drogas ou álcool.

Mas o seu não é o programa típico de reabilitação: ele está em um acampamento onde se reabilitam funcionários espanhóis corruptos para, em seguida, serem “reinseridos” na sociedade tradicional.

Carlos Alburquerque na penitenciária de Córdoba, Espanha. Foto: Maria Contreras Coll/The New York Times

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“A reparação dos danos é o que me foi deixado nesta vida”, disse Albuquerque, que está cumprindo uma sentença de prisão por roubar cerca de 400 mil euros (cerca de US$ 500 mil) em sua função de redator de contratos e escrituras.

Ao longo de 32 sessões em uma austera sala de conferências na penitenciária de Córdoba, Albuquerque será monitorado por uma equipe de psiquiatras. Ele sentará em círculo com outros funcionários corruptos participando de sessões de terapia de grupo com títulos como “capacidades pessoais” e “valores”. De certo modo, ele é a cobaia de um experimento que visa responder a uma pergunta muito antiga: enterrado lá no fundo da alma de alguém como Albuquerque, poderá existir um homem honesto?

O fato deste programa estar sendo aplicado na Espanha diz muito a respeito da convicção do país em segundas chances, e demonstra até que ponto a corrupção conquistou a imaginação do público no país. Folheie um jornal ou ligue o rádio: você ouvirá falar em escândalos e trapaças que quase sempre têm a ver com o bolso dos cidadãos.

Houve o chamado “Caso Gürtel”, às vezes citado como “o Watergate da Espanha”, que estourou depois da descoberta de uma série de subornos para contratos públicos, anotados em um caderno pertencente ao tesoureiro do partido governista. O escândalo ajudou a tirar o partido do poder em 2018. Houve o “Caso Palau”, em que o diretor de uma sala de música da Catalunha defraudou a instituição em 23 milhões de euros, usando os proventos para reformar casas e pagar férias milionárias, entre outras extravagâncias.

Na região costeira montanhosa da Galícia, a polícia prendeu uma organização composta por funcionários municipais corruptos em uma operação chamada “Operação Pokémon”. “Por que razão lhe foi dado o nome de um desenho japonês nunca foi esclarecido – mas alguns especularam que foi por causa do grande número de funcionários envolvidos. (Há centenas de personagens no mundo Pokémon).”

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Recentemente, Ángel Luis Ortiz, um ex-juiz que atualmente administra as prisões da Espanha, suspirou profundamente ao olhar pela janela do seu gabinete, no centro de Madri, durante uma conversação sobre a luta da Espanha contra o peculato. Os ciclos de expansão e contração da economia espanhola levaram o país a uma longa sequência de fraudes e traições da confiança da população, ele disse.

A prisão de Córdoba, Espanha, onde é realizado o curso de reabilitação de corrupção. Foto: Maria Contreras Coll/The New York Times

Mas, pelo menos, as taxas de corrupção da Espanha não eram piores do que as de outras nações europeias, observou Ortiz, apenas 5% de todos os crimes. (O organismo de combate à corrupção, Transparência Internacional, coloca a Espanha logo abaixo da França, e acima da Itália). Foi a vontade da Espanha de reabilitar os infratores que distinguiu o país do resto, segundo Ortiz – uma oferta que agora se estende a cerca de 2.044 criminosos do colarinho branco que se encontram nas prisões espanholas.

Até o momento, nove prisões adotaram estes programas, desde março. Os presos não têm uma redução da pena por sua participação, mas os funcionários afirmam que a sua participação é vista favoravelmente quando chega o momento de solicitar a condicional.

Entretanto, apesar de todos os voluntários, Ortiz ainda acredita que o seu grande desafio é talvez convencer os funcionários corruptos da Espanha de que pode, de fato, haver algo errado com eles. “Eles são pessoas com dinheiro e poder – e nós estamos lutando contra a ideia de que eles podem levar alguma coisa e não precisam de nenhuma ajuda”, ele disse.

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Por isso, o governo recorreu a Sergio Ruiz, um psiquiatra forense da cidade de Sevilha, no sul da Espanha, que ajudou a elaborar o programa. Ruiz disse que, além de fazer com que os participantes reconheçam suas falhas na terapia de grupo, é possível que eles sejam solicitados a participar de sessões de “justiça restaurativa” nas quais podem pedir perdão às suas vítimas.

Ruiz explicou que se surpreendeu, no início, quando vasculhou a literatura científica e praticamente não descobriu nada a respeito da reabilitação de criminosos do colarinho branco. Os psiquiatras estudaram assassinos ad nauseam, explicou. Mas raramente se preocuparam em entrar na mente do funcionário suspeito que fraudou a verba do lixo público.

Então, ele decidiu fazer uma pesquisa por conta própria. Ele pediu voluntários que se dividissem em três grupos – presos de colarinho branco, criminosos violentos e um grupo de “controle” formado por espanhóis comuns – e pesquisou os valores e as convicções de cada um.

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Os resultados surpreenderam todos, ele disse.

“Nós considerávamos estas pessoas indivíduos impiedosos, mas não é nada disso”, afirmou  Ruiz falando dos criminosos do colarinho branco. “Eles têm o mesmo sistema de valores de qualquer cidadão comum”.

Ao contrário, disse, as mentes corruptas têm uma capacidade peculiar de criar exceções às próprias regras, o que os psicólogos cognitivos às vezes chamam de “descomprometimento moral”. Eles têm maneiras intrincadas de explicar seus delitos como algo que beneficia outros e não eles próprios.

Carlos Alburquerque participa de exercício de mediação durante curso de reabilitação de corrupção na penitenciária de Córdoba, Espanha. Foto: Maria Contreras Coll/The New York Times

Ruiz detectou níveis perigosos de outros dois traços nos fraudadores.

Egocentrismo e narcisismo”, ele disse.

À primeira vista, Albuquerque, o tabelião corrupto de Córdoba que se apresentou como voluntário à reabilitação, parece não ter nenhum dos dois. Ele é uma pessoa de maneiras brandas e fala calma, mesmo no tumulto da penitenciária. É difícil imaginar que tenha embolsado quase US$ 500 mil até ser apanhado. “Neste caso, a pessoa precisa ser responsável”, ele disse, admitindo ter errado.

Mas há algo mais, acrescentou Albuquerque.

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Apesar do desaparecimento de grandes somas de dinheiro durante o seu trabalho, ele sempre tomou o cuidado de pagar muito bem os seus funcionários, ao contrário de muitos outros tabelionatos, afirmou. Ele inclusive tentou devolver grande parte do dinheiro roubado antes de ser apanhado. “Qualquer um em Córdoba poderia atestar que ele era uma pessoa muito importante na cidade”.

“Eu tenho uma vantagem em relação a outros mortais, não todos, é que consigo dormir cinco horas menos do que os outros”, contou explicando a sua ética de trabalho. “O que eu fiz sempre foi elaborado e estudado”.

Estas são as palavras que Yolanda González Pérez, a diretora da prisão, diz ter ouvido antes de outros criminosos do colarinho branco, que não aceitaram plenamente os seus crimes. “Eles dizem a si mesmos: ‘Eu não sou tão criminoso quanto os outros’ ”, afirmou.

Mas Ortiz, o diretor do sistema prisional espanhol, não está preocupado. Ele está pronto a arregaçar as mangas com Albuquerque e outros participantes que podem estar dispostos a repensar suas ações passadas. É preciso paciência para mudar alguém, segundo Ortiz.

“Talvez trabalhemos meses nestas sessões”, prosseguiu. “Continuaremos assim com os prisioneiros e veremos quando o fruto estará maduro”. / TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA

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