Na França, morrer em casa pode significar uma longa espera por um médico

É ilegal mover um corpo sem atestado de óbito, o que somente um médico pode assinar. Mas um médico pode ser difícil de encontrar

PUBLICIDADE

Por Norimitsu Onishi
Atualização:

DOUAI, FRANÇA - A mãe de Sandra Lambryczak, de 80 anos, sofria de câncer da mama em fase terminal e deveria morrer em casa. Mas quando veio a falecer, numa manhã de sábado, Sandra esbarrou em um problema cada vez mais frequente na França: por lei, o corpo só poderia ser removido quando um médico emitisse o atestado de óbito.

PUBLICIDADE

“Madame, nos finais de semana, não há ninguém, não há um médico”, disseram-lhe quando ela chamou a emergência. “Chorei: ‘Não pode ser verdade. Não podemos deixar um corpo esperando até a manhã de segunda-feira’”. Veio a polícia, mas não encontrou um médico. Doze horas mais tarde, somente depoisque a enfermeira de sua mãe conseguiu localizar o seu médico pessoal, o corpo pôde ser levado para uma funerária. “Foi um verdadeiro pesadelo”.

Estas esperas estão se tornando cada vez mais frequentes perto de Douai, uma cidade de 40 mil habitantes no norte da França, e em outras regiões onde os médicos são escassos. Os prefeitos, a polícia e outros responsáveis tentam ajudar as famílias a encontrar um médico para emitir um atestado de morte.

Em alguns países, enfermeiros, médicos legistas e outros podem atestar um óbito. Mas na França, onde 25% da população morre em casa, esta função cabe exclusivamente aos médicos, que devem ir até a residência, certificar que a morte foi natural e anotar a sua causa.

Uma grave escassez de médicos em algumas áreas criou “desertos médicos”, onde, segundo o governo, vive 8% da população, apesar do aumento do número destes profissionais. Ocorre que eles se concentram nas áreas metropolitanas, reforçando a sensação de um fosso cada vez maior entre uma França próspera e uma periferia menosprezada.

“Falei: 'Isto não pode ser verdade. Não se pode deixar um cadáver até a manhã da segunda-feira' ”. Foto: Dmitri Kostyukov para The New York Times

“Nunca houve tantos médicos na França, e no entanto temos desertos médicos em que as famílias são obrigadas a ficar com um cadáver em casa, e onde elas são abandonadas tanto na vida quanto na morte,” disse Christophe Dietrich, o prefeito de Laigneville, a localidade de 4,5 mil habitantes na qual os dois últimos médicos se aposentaram em 2017.

A cidadezinha proibiu que as pessoas morram em casa, na tentativa de pressionar as autoridades a colocar um médico na região, mas com resultados pouco satisfatórios, disse Dietrich. Nenhum profissional se apresentou ainda, mas foi criado um centro de telemedicina.

Publicidade

Cinquenta por cento dos médicos da família franceses têm mais de 55 anos. Atualmente, as autoridades tentam solucionar o problema criado por uma onda de aposentadorias eliminando o limite estabelecido para as matrículas nos cursos de medicina. Mas os efeitos só deverão ser sentidos daqui a dez anos. É difícil atrair profissionais de saúde para estes desertos médicos, que carecem de outros serviços, afirmou Marc Vogel, vice-presidente do conselho médico francês do departamento do norte, que inclui Douai.

Sobrecarregados, os médicos que restam não se sentem na obrigação de fazer sacrifícios para atestar o falecimento de uma pessoa que não é seu paciente, afirmam alguns. A França paga uma taxa única de 100 euros, ou US$ 110, para fornecer o atestado de um óbito ocorrido durante a noite ou em final de semana e em feriados, e em regiões mal servidas.

Frédéric Deleplanque teve de esperar dias para um médico atestasse a morte do sogro depois de encontra-lo um sábado de manhã em Douai. Ele conseguiu a polícia e o corpo de bombeiros, mas não encontrou um médico. Na segunda-feira de manhã - quando o corpo começava a se decompor - Deleplanque chamou mais uma vez a polícia: Falei para eles: ‘É simples, vou pegar meu sogro e colocá-lo no meio da rua’”.

Antes que pudesse pôr em prática sua ameaça, encontrou um médico que tratara de seu pai, anos antes. O médico veio e assinou o atestado, e no dia seguinte seu sogro foi cremado. “Nós nos sentimos abandonados pelo Estado”, afirmou Deleplanque. “Não éramos nada”. / TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.