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A freira que deseja lembrar que você um dia morrerá

Sofrimento e morte são eventos da vida: 'Todos morrem, seu corpo apodrece e cada rosto se transforma numa caveira'

Por Ruth Graham
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BOSTON – Antes de entrar para o convento Filhas de São Paulo, em 2010, a irmã Theresa Aletheia Noble leu uma biografia do fundador da ordem, um padre italiano nascido na Itália nos anos 1880. Ele mantinha uma caveira de cerâmica na sua escrivaninha como um lembrete da inevitabilidade da morte. Aletheia, que quando adolescente era fã de punk, achou que o mórbido objeto era “super punk rock”, lembrou ela recentemente. E pensou vagamente em adquirir também uma caveira para ela.

Hoje, ela não tem escassez de caveiras. As pessoas enviam canecas e rosários de caveiras por e-mail, compartilham fotos das suas tatuagens de caveiras. Um crânio de cerâmica de uma loja de artigos de Halloween está na sua escrivaninha. Seu nome no Twitter inclui um emoji com uma caveira e ossos cruzados, como uma bandeira pirata.

Irmã Theresa Aletheia Noble segura uma pequena escultura de uma caveira no convento das Filhas de São Paulo em Boston. Foto: Tony Luong/The New York Times

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Isso porque desde 2017 ela assumiu como missão reviver a prática do memento mori, frase latina que significa “lembre-se da sua morte”. O conceito é refletir intencionalmente sobre sua própria morte todos dias como uma maneira de valorizar o presente e focar no futuro. O que parece radical numa era em que a morte – até muito recentemente – era um fato fácil de ignorar.

“Minha vida vai ter um fim e tenho um tempo limitado”, disse ela. "Naturalmente, nossa tendência é pensar nas nossas vidas como de eterna continuidade”.

Aletheia rejeita qualquer sugestão de que a prática seria algo mórbido. Sofrimento e morte são eventos da vida: focar somente no que é “belo e brilhante” é superficial e nada autêntico. “Procuramos reprimir a ideia da morte ou fugir dela porque achamos que assim encontraremos a felicidade”, afirma ela. “Mas, na verdade, é enfrentando as realidades mais sombrias da vida que vamos encontrar luz nelas”.

A prática de meditar regularmente sobre a morte é venerável. São Bento instruiu seus monges, no século seis, a “terem a morte diariamente diante dos seus olhos”. Para cristãos como Aletheia, a promessa de uma vida melhor após a morte é algo inescapável. Mas a prática não é somente cristã. A consciência da morte é uma tradição no Budismo, e Sócrates e Sêneca foram alguns dos primeiros pensadores que recomendavam a “prática” da morte como uma maneira de cultivar o significado das coisas e foco. Caveiras, relógios e alimentos em decomposição são temas recorrentes na história da arte.

Durante quase todo o tempo de existência da humanidade, as pessoas morreram em idade mais jovem do que hoje, com mais frequência em casa e havia menos controle médico dos seus dias finais. “Para nós, a morte é exótica”, disse Joanna Ebenstein, fundadora da Morbid Anatomy, uma empresa do Brooklyn que oferece eventos e livros focados na morte, arte e cultura. “Mas isso é um luxo particular para nosso tempo e lugar”.

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A pandemia, naturalmente, tornou impossível esquecer a morte. Desde o ano passado, Ebenstein realiza uma série de aulas memento mori on-line, em que os alunos exploram a história global das representações da morte e depois criam a sua própria. Os projetos finais incluíram um caixão miniatura, uma série de cartas a serem entregues post-mortem e um baralho de cartas de tarô compostas de fotos tiradas por um marido que morreu recentemente. “Pela primeira vez em minha vida, este é um tema não só interessante para um grupo de descolados. A morte é de fato relevante”, disse ela.

As Irmãs de São Paulo, ordem da freira Aletheia, foi fundada no início do século 20 com o fim de usar “os meios mais modernos e eficazes da mídia”, para pregar a mensagem de Cristo. Há um século, isso significava publicar livros, o que a ordem ainda faz. Mas hoje “recursos modernos e eficazes” significam algo mais e muitas das freiras são ativas nas redes sociais, onde usam variações da hashtag #MediaNuns.

Em dezembro, a irmã Aletheia apareceu num vídeo no TikTok criado pela ordem, que apresentava competições católicas irreverentes como a oração da noite versus a oração da manhã e São Pedro versus São Paulo. O vídeo chamado registrou mais de 4,4 milhões de visualizações.

Irmã Theresa Aletheia Noble na capela funerária do convento das Filhas de São Paulo em Boston. Foto: Tony Luong/The New York Times

Quando adolescente em Tulsa, Oklahoma, Aletheia, agora com 40 anos, ouvia os Dead Kennedys e assistia a shows locais de punk com as amigas. Seus pais eram católicos devotos; seu pai era doutor em teologia e trabalhou numa diocese católica local por um tempo. Mas ela era uma garota descrente e se declarava ateia quando adolescente, não se submetendo ao processo formal de ingressar na igreja.

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No Bryn Mawr College, foi líder de um clube de defesa dos direitos dos animais. Mas disse que ficou chocada ao conhecer os argumentos do movimento contra o “especismo”. Pareceu a ela que havia uma diferença real, difícil de definir, entre os humanos e os outros animais. Mas “como ateia materialista, realmente não conseguia achar uma razão para isso. Tinha um sentimento intuitivo de que a alma existia”.

Quando trabalhou numa fazenda orgânica na Costa Rica depois de um período no Teach for America, ela teve uma experiência de conversão repentina e dramática: Deus era real e ela tinha de imaginar um plano para sua vida. Quando seu namorado foi buscá-la no aeroporto na volta da sua viagem, ela terminou com ele e cancelou seu projeto de cursar a faculdade de Direito. Dentro de quatro anos, estava usando um hábito no convento, um edifício de tijolos de cor pálida que abrange uma editora, jardins e uma pequena capela funerária onde as freiras são enterradas após sua morte.

Aletheia começou seu projeto memento mori no Twitter onde compartilhou meditações diárias por mais de 500 dias consecutivos. Em outubro de 2018, no seu 445º dia com a caveira em cima da sua escrivaninha, ela escreveu “todos morrem, seus corpos apodrecem e cada rosto se transforma numa caveira (a menos que você seja imaculado).

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De início, ela não tinha uma meta particular além de se comprometer com sua própria prática diária. Mas os tuítes se tornaram um sucesso e o projeto se expandiu. Hoje, a ordem vende decalques de vinil (US$ 4,95, um bom presente de Natal!) e moletons com capuz adornados com um emblema de caveira desenhado pela Irmã Danielle Victoria Lussier, outra freira do convento. Aletheia continua a promover a prática nas redes sociais e postou um diário de orações memento mori, e também um ato de devoção que inicia com a frase “Você vai morrer”.

Os livros se tornaram os mais vendidos da ordem nos últimos anos – um estímulo para as freiras cuja renda da editora sem fins lucrativos caiu drasticamente em décadas recentes. Aletheia atualmente trabalha num novo livro de orações para a época do Advento, antes do Natal. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO

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