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Holanda adota medidas para abandonar rótulo de paraíso fiscal

O ministério das Finanças deve pôr fim aos benefícios que fizeram do país um ímã de corporações estrangeiras

Por Jack Ewing
Atualização:

HAIA, HOLANDA - A Holanda quer que o público saiba que o país não é um paraíso fiscal. Mas Menno Snel, segundo em comando das finanças do país, é obrigado a reconhecer que os holandeses se tornaram especialistas em outra coisa: planejamento fiscal agressivo.

A afirmação é condizente com o volume de dinheiro que entra pelas fronteiras do país. Para os propósitos da evasão fiscal, a Holanda oferece a respeitabilidade e a segurança de um país europeu, ao mesmo tempo permitindo que multinacionais como Google e Ikea transfiram seus lucros usando subsidiárias holandesas e reduzindo drasticamente o imposto devido.

Muitas empresas estrangeiras abriram escritórios na Holanda. Quarteirão da Warner Brothers em Amsterdã. Foto: Marcel Wogram para The New York Times

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O átrio do ministério holandês das finanças, onde Snel trabalha, é até decorado com verdejantes palmeiras em vasos que compõem a atmosfera de um paraíso fiscal dos trópicos. O irônico paralelo é provavelmente fruto do acaso.

De todo modo, a posição do país como centro de evasão fiscal pode estar prestes a mudar. Numa ampla reversão, o ministério das finanças enviou ao parlamento esta semana propostas que acabariam com os benefícios que fizeram da Holanda um ímã de corporações estrangeiras - especialmente as americanas, como Netflix, Nike e Uber. O debate das medidas deve continuar até dezembro.

De acordo com as propostas, a Holanda planeja impor taxas aos lucros transferidos a paraísos fiscais e impedir que empresas explorem inconsistências na lei do país para receber em dobro uma mesma dedução. Ainda não se sabe se as medidas vão passar pelos contadores, advogados e consultores que ajudam empresas estrangeiras a reduzir o pagamento de seus impostos - e que manifestaram sua oposição às mudanças.

"Temos que ser justos ao reconhecer que algumas empresas fazem mau uso do sistema tributário aberto da Holanda", disse Snel, cujo cargo formal é de secretário de estado para as finanças, em uma entrevista.

Em meio à reação popular contra aquilo que muitos enxergam como uma trapaça das multinacionais que se aproveitam do sistema, a mudança tributária é um assunto que mobilizou os ânimos políticos nos na Holanda este ano. Além disso, os legisladores precisam fechar lacunas para evitar a infração de novas regras da UE que devem entrar em vigor em 2019.

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Cortes de impostos nos Estados Unidos também afetam o poder de atração do sistema holandês. Ao mesmo tempo, novas regras aprovadas em Washington dificultam a transferência de lucros das empresas para o exterior.

Enquanto membro relativamente rico da zona do euro, a Holanda oferece um sistema judiciário confiável e a ausência de um sistema oficial de corrupção, coisa difícil de encontrar entre os paraísos fiscais situados em ilhas. Há uma ampla rede de tratados fiscais com praticamente todos os países, e um imposto baixíssimo (ou ausente) cobrado sobre o dinheiro que passa pelo país. É fácil levar o dinheiro para lá, e é fácil transferi-lo para outro país em seguida.

Práticas desse tipo, favoráveis aos negócios, ajudam a explicar por que a Holanda, com sua população de 17 milhões de habitantes, atrai mais investimento estrangeiro que países muito maiores, como França e Alemanha. Em 2017, a Holanda estava na quarta posição da classificação de países que mais recebem investimento estrangeiro direto.

Essa imensa entrada de dinheiro "indica que as regras tributárias do país são usadas por empresas envolvidas em PTA", disse este ano a Comissão Europeia, referindo-se ao planejamento tributário agressivo.

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A Holanda é especialmente popular entre as empresas americanas. Google e IBM têm uma presença expressiva no país, bem como provedores de serviços como o escritório de advocacia Baker McKenzie e a empresa de contabilidade Deloitte. Tecnicamente, a Fiat Chrysler é uma empresa holandesa. O escritório central da Nike na Europa fica em Hilversum, ao sul de Amsterdã.

A Nike usou a Holanda para reduzir significativamente o imposto pago sobre as vendas fora dos Estados Unidos, de acordo com o Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (o New York Times é membro do consórcio).

A fabricante de artigos esportivos usou um método comum, dentro da lei, para transferir seus lucros para um paraíso fiscal, de acordo com a pesquisa do consórcio. Primeiro, a empresa transferiu a propriedade intelectual de sua marca registrada (o logotipo "swoosh") para uma subsidiária em Bermuda, onde não há imposto de renda corporativo. Então, sua subsidiária em Hilversum pagou royalties pelo uso das marcas à unidade de Bermuda. Os royalties foram contabilizados como despesas empresariais e, assim, evitou a taxação na Holanda.

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"A Nike atende a todas as leis fiscais, e fiscalizamos rigorosamente o cumprimento de todas as normas nos nossos negócios", disse a empresa em declaração ao Times.

Ao menos até recentemente, o ministro holandês das finanças foi um facilitador convicto de tais arranjos. Contadores e advogados corporativos poderiam telefonar para o ministério e obter aprovação prévia de suas estratégias. Faz tempo que a Holanda defendia suas leis argumentando que estas incentivavam as multinacionais a abrir escritórios centrais no país, criando empregos e atraindo investimentos. Mas, recentemente, o pensamento jurídico e a opinião pública mudaram.

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Funcionários do governo em Bruxelas acusaram a Holanda de violar as regras da UE ao ajudar a Ikea a reduzir os impostos devidos pela empresa. E pesquisas de opinião mostram que o eleitorado holandês se tornou cada vez mais hostil diante daquilo que é visto como um privilégio especial estendido a empresas ricas que pagam pouco ou nenhum imposto de renda - em comparação, os moradores de classe média da Holanda acabam pagando mais da metade de sua renda em impostos.

Nas eleições nacionais realizadas no ano passado, quase todos os principais partidos políticos prometeram mudanças. E a raiva do público proporcionou ímpeto político ao governo.

Snel, membro do partido Democratas 66, um parceiro social-liberal da coalizão de governo, é acusado por ativistas de proteger os interesses corporativos com mais zelo do que seus antecessores.

"Menno Snel se mostra mais proativo e construtivo ao lidar com a questão da evasão fiscal", disse Francis Weyzig, especialista em política tributária da instituição de caridade Oxfam, em Haia, para quem os paraísos fiscais em ilhas roubam a receita dos países em desenvolvimento. "Certamente houve uma mudança".

Snel propôs, por exemplo, medidas para impedir as empresas de explorar inconsistências nas regras nacionais permitindo que o lucro escorregue pelas brechas, evitando o pagamento de impostos. Outras propostas dele obrigam advogados e contadores a revelar informações a respeito de arranjos questionáveis. 

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A Holanda também vai limitar o tamanho das deduções que as empresas podem solicitar para o pagamento de juros, medida voltada contra outro método popular de remessa dos lucros a paraísos fiscais. Dentro desse esquema, empresas solicitam empréstimos em países de juros baixos, mas incluem os juros na declaração de renda da Holanda, onde podem ser descontados como despesa operacional.

Mas a tributação é um negócio importante para a Holanda, o que abre a possibilidade de vigorosas objeções por parte das multinacionais enfraquecerem os esforços voltados para uma reforma do sistema.

Para os críticos, algumas das propostas de reformas são muito insuficientes. Novas regras exigiriam que empresas registradas na Holanda tenham operações reais, mas as empresas podem se enquadrar nessa definição se tiverem um escritório no país com folha de pagamento anual de € 100 mil, ou cerca de US$ 115 mil - um limite baixo.

E, recentemente, aumentou a indignação do público diante das exceções tributárias aos acionistas corporativos, vistas como benéficas à Shell e à Unilever, duas das maiores empresas da Holanda, em detrimento do cidadão comum.

Snel disse que funcionários holandeses continuariam a se consultar com as empresas, mas seriam mais rigorosos na aplicação das regras existentes e das que passarão a vigorar nos próximos anos. E o sigilo acabou. A Holanda já começou a compartilhar informações financeiras com outros países.

"Não queremos ser vistos como facilitadores da evasão fiscal", disse Snel. "Nós pagamos nossos impostos".

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