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Inscrições em ossos antigos causam conflitos na Europa Central

Arqueólogos dizem que marcas encontradas em osso são runas germânicas do sexto século

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Por Redação
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LANY, República Checa – Em uma região turbulenta, há muito tempo disputada por grupos étnicos e linguísticos rivais, arqueólogos da República Checa descobriram algo incomum: provas de que povos que estiveram em conflito durante grande parte da era moderna eram aliados em séculos anteriores.

A poucos metros de uma casamata do exército checo, construída como defesa contra a Alemanha nazista, os arqueólogos descobriram um osso bovino que dizem ter inscrições datadas do século sexto e que sugerem que povos que falavam línguas diferentes se misturavam e trocavam conhecimentos naquela época.

Ossos marcados com runas germânicas foram encontrados em uma escavação República Checa; descoberta provocou uma briga acadêmica e nacionalista. Foto: Akos Stiller/The New York Times

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Reação talvez adequada em uma região tão turbulenta, a descoberta desencadeou uma briga furiosa entre acadêmicos e arqueólogos, nacionalistas e eurófilos sobre o que tudo isso significa.

O fragmento de osso, identificado por análise de DNA e datação por carbono como proveniente da costela de uma vaca que viveu há cerca de 1.400 anos, foi encontrado em um assentamento eslavo em 2017, de acordo com Jiri Machacek, chefe do departamento de arqueologia da Universidade Masaryk, em Brno, na República Checa.

Mais recentemente, porém, houve uma descoberta extremamente relevante: uma equipe de estudiosos liderada por Machacek concluiu que o osso contém runas do século sexto, sistema de escrita desenvolvido pelos primeiros alemães. "Isso mostra que eles estavam tentando se comunicar e não só brigando o tempo todo", disse Machacek.

Não está claro se as runas foram inscritas por uma pessoa de origem germânica que vivia ao lado de eslavos ou gravadas por um eslavo que conhecia as runas germânicas. (Os eslavos só desenvolveram um sistema de escrita próprio três séculos depois.)

De qualquer forma, segundo Machacek, elas indicam que diferentes povos que viviam no atual extremo leste da República Checa, conhecido como Morávia, interagiam de maneiras anteriormente desconhecidas. "É muito simbólico que tenhamos encontrado isso tão perto daquela coisa", afirmou Machacek, apontando para a fortificação militar coberta de musgo que sobrou da Segunda Guerra Mundial, quando a Alemanha conquistou terras eslavas cujo povo Adolf Hitler considerava "subumano".

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Embora se dedique a desenterrar o passado distante, a arqueologia tem sido um campo carregado de preocupações atuais. Nacionalistas do século dezenove, nazistas e comunistas soviéticos abusaram dela para justificar e promover suas causas.

"Como tudo na Europa Central, esse não é simplesmente um debate acadêmico. Nacionalistas e nativistas discutem há muito tempo as origens dos eslavos e todos os aspectos da pré-história eslava", disse Patrick Geary, especialista em história medieval no Instituto de Estudos Avançados, em Princeton, Nova Jersey.

Como o passado e o presente estão tão interligados, o osso rúnico descoberto em Lany gerou um debate acalorado, com alguns tchecos de tendência nacionalista denunciando-o como parte de um esforço para minar a identidade nacional a serviço da União Europeia, projeto baseado na ideia de que os europeus devem e podem se dar bem. Um dos membros da equipe que identificou as marcas como runas alemãs recebeu ameaças de morte.

"Se nós, checos, temos uma cultura, nunca se deve dizer que a herdamos dos alemães, mas que a possuímos apesar dos alemães", escreveu o nacionalista assumido Stanislav Jahoda, em um debate virtual realizado por um importante jornal checo. Outros consideraram a escavação arqueológica um projeto de propaganda da União Europeia para controlar a hostilidade checa contra o bloco europeu. (Uma pesquisa realizada no ano passado revelou que 57% dos checos acham que a adesão à União Europeia está destruindo a identidade do país.)

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A raiva foi além das fronteiras da República Checa e chegou aos estudiosos estrangeiros que rejeitam a possibilidade de que os eslavos tivessem qualquer sistema de escrita antes que dois monges gregos, Cirilo e Metódio, chegassem à Morávia no século nono e criassem um sistema de escrita que mais tarde se tornou o alfabeto conhecida como cirílico. Variações do cirílico são usadas atualmente na Rússia, Ucrânia, Bulgária e Sérvia.

A ideia de que os primeiros eslavos poderiam ter usado runas germânicas perturba a visão de uma dicotomia nítida entre as duas culturas, divisão que tem sustentado paixões nacionalistas de ambos os lados desde o século dezenove. As runas são vistas como particularmente tóxicas em terras eslavas desde a Segunda Guerra Mundial, quando a força paramilitar nazista, a SS, usava runas estilizadas como insígnia.

"A longa animosidade entre eslavos e povos germânicos deixa algumas pessoas bastante ansiosas para insistir que a cultura eslava não deve nada à cultura germânica e que não poderia ter havido nenhuma mistura ou nenhum contato entre a antiga população germânica da região e os eslavos que chegaram posteriormente", explicou Geary.

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Em uma entrevista recente à televisão estatal búlgara, Anna-Maria Totomanova, acadêmica do Departamento de Estudos sobre Cirilo e Metódio da Universidade de Sófia, denunciou os arqueólogos checos como charlatães: "No começo, eu estava com raiva, mas depois achei risível." Ela disse que as runas "são germânicas", acrescentando que não era possível que um povo eslavo as tivesse usado para escrever algo antes de desenvolver um alfabeto próprio graças aos monges.

Estudiosos ocidentais geralmente acreditam que os arqueólogos checos identificaram corretamente as incisões no osso como runas, mas alguns questionam se as pessoas que viviam na área no século sexto eram eslavas. "A origem e a difusão dos eslavos continuam a ser um dos grandes mistérios do primeiro milênio", comentou Geary.

Arqueólogo segura o osso da costela onde as runas estão marcadas. Foto: Akos Stiller/The New York Times

A visão consensual até recentemente era que os primeiros eslavos se mudaram para a Europa Central vindos de uma pátria original mais a leste, em meados do primeiro milênio, e tomaram conta de vastas extensões de terra anteriormente habitadas por tribos germânicas, que migraram para outros lugares depois do colapso do Império Romano.

Florin Curta, professor de história e arqueologia da Universidade da Flórida, afirmou que "não há dúvida" de que as marcas no osso de Lany são runas germânicas e que isso constitui uma "descoberta muito importante". Mas questionou a visão da equipe da Universidade de Masaryk de que aqueles que viviam em Lany quando o osso recebeu as marcas eram eslavos que haviam migrado para a área. Segundo ele, o mais provável é que fossem habitantes locais que falavam e escreviam uma língua germânica.

As discussões sobre as origens dos povos conhecidos atualmente como eslavos por causa de suas raízes linguísticas comuns foram complicadas pelo fato de que, desde a ascensão do nacionalismo no século dezenove, muitos estudiosos eslavos tentavam atribuir a origem dos povos eslavos à terra natal desses mesmos estudiosos, apresentando o próprio país como a verdadeira pátria da cultura eslava. "Esse é um problema sério para nossa identidade. Toda sociedade precisa de mitos de origem e gosta de se considerar especial", disse Machacek.

Quando o osso de Lany foi descoberto, em julho de 2017, chamou pouca atenção. "Não foi nada especial, apenas mais um osso velho", lembrou Petr Dressler, o estudioso checo que supervisionou a escavação.

Mais tarde, no entanto, uma estudante de pós-graduação em arqueologia, Alena Slamova, percebeu arranhões incomuns nele, o que levou a três anos de investigação que, em fevereiro deste ano, culminaram em um artigo escrito em parceria por pesquisadores checos, austríacos, suíços e australianos no Journal of Archaeological Science.

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As marcas, de acordo com a equipe da Universidade de Masaryk, na verdade eram letras rúnicas, alfabeto antigo usado por tribos germânicas antes da adoção da escrita latina.

Inscritas no osso estão seis das últimas oito runas de um alfabeto de 24 letras conhecido como Velho Futhark, o alfabeto rúnico mais antigo usado pelas tribos germânicas durante a primeira metade do primeiro milênio.

Ao contrário das tribos germânicas, que usavam letras rúnicas já no primeiro século, pensava-se que os falantes de línguas eslavas não haviam tido uma língua escrita até o século IX em lugares como a Morávia – que abrigava um antigo governo eslavo conhecido como Grande Morávia.

"De repente, por causa desse achado arqueológico, a situação parece diferente. Vemos que as pessoas desde o início estavam conectadas, que os eslavos utilizavam runas desenvolvidas pelos primeiros alemães – ou que pelo menos tiveram contato com eles", explicou Machacek, acrescentando que o fato de que os eslavos também usavam – ou se misturaram com pessoas que usavam – runas germânicas muito antes da chegada dos monges gregos que criaram o cirílico perturba uma convicção arraigada ao longo dos séculos de que a cultura eslava se desenvolveu separadamente da dos povos germânicos e se baseia em seu alfabeto único.

Esse foi um dos fatores que influenciaram o debate em torno das descobertas feitas pelo grupo de pesquisadores da Universidade de Masaryk.

Zuzana Hofmanova, membro da equipe de Brno que analisa DNA antigo, disse que recebeu uma mensagem anônima que a denunciava, e a vários estudiosos que trabalharam no osso, como traidores que mereciam ser mortos. "As informações arqueológicas às vezes podem ser mal interpretadas por pessoas em busca de pureza étnica", observou ela.

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