Quarto do Nobel de Literatura Joseph Brodsky vira museu em sua homenagem

Espaço fica no apartamento comunal onde o poeta morou com seus pais e compartilhou cozinha e banheiro com outras três famílias

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Por Ivan Nechepurenko
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SÃO PETERSBURGO – Até fugir da União Soviética em 1972, o poeta russo Joseph Brodsky morou em um enfadonho apartamento comunal em São Petersburgo, na Rússia, compartilhando banheiro e cozinha com outras três famílias.

Fossem quais fossem "os aspectos desprezíveis desse modo de existência", como Brodsky os descreveu, sua vida doméstica beneficiou sua arte, inspirando alguns de seus mais intensos poemas e outros escritos. Em um conhecido ensaio de 1985, ele disse que a vida comunitária "talvez tenha um lado redentor, porque reduz a vida ao básico: elimina todas as ilusões sobre a natureza humana".

Visitantes passeiam no Museu Joseph Brodsky Museum, que fica no prédio onde o poeta viveu emSão Petersburgo. Foto: Mary Gelman/The New York Times

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A vida em comunidade pode ter sido boa para sua poesia. Mas nem tanto quando começaram as tentativas de transformar sua casa em um museu.

A Rússia adora homenagear seus gigantes da literatura, mas mesmo o poderoso Estado russo não poderia abrir um museu em um apartamento compartilhado com outros residentes ainda lá instalados. No entanto, depois de anos de esforço, uma fundação sem fins lucrativos conseguiu retirar de lá os outros moradores. Todos, exceto uma mulher.

A última remanescente foi Nina Fyodorova, de 81 anos, que havia morado a vida toda naquele cômodo. Ela se recusava a sair a qualquer preço, dizendo: "Não se pode arrancar uma árvore velha!"

Mas um raro projeto de base em um país onde o governo busca controlar todas as esferas da vida pública teve mais sucesso que o Kremlin: o Museu Joseph Brodsky, uma iniciativa privada, foi inaugurado no antigo quarto do poeta em dezembro.

"O Estado geralmente tenta preservar a memória de figuras importantes como Brodsky. Não somos uma exceção", disse Yulia Senina, pesquisadora do museu. Este se tornou uma cobiçada atração em São Petersburgo, capital cultural da Rússia.

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Brodsky morreu no bairro nova-iorquino do Brooklyn em 1996, aos 55 anos, mas muitos de seus antigos amigos e conterrâneos que sobreviveram a ele, contrariando todas as probabilidades, sonhavam em abrir um museu em um espaço que tanto influenciara sua arte. Dois desses amigos, Mikhail Milchik e Yakov Gordin, pediram ajuda a empresas russas e começaram a comprar os quartos do apartamento comunitário logo depois da morte de Brodsky.

Os apartamentos comunais foram uma marca registrada da vida soviética – e continuam sendo uma realidade para muitas pessoas na segunda maior cidade da Rússia. Por fora, São Petersburgo, que já foi a grandiosa capital de um vasto império, é uma cidade de mansões ornamentadas. Mas, dentro de muitas dessas exuberantes fachadas, há pessoas amontoadas em cômodos sombrios, e várias famílias compartilham um só banheiro.

Brodsky, futuro ganhador do Prêmio Nobel de Literatura, morava em um cômodo que havia sido parte de uma série de palacetes. Depois da Revolução Bolchevique, a longa fileira de portas perfeitamente alinhadas foi emparedada, criando-se cômodos separados para as famílias.

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O presidente Vladimir Putin, 12 anos mais novo que Brodsky, cresceu em um apartamento comunal semelhante, a apenas dois quarteirões dali – embora sua casa não tivesse banheiro, e ele tivesse de usar uma casa de banhos coletiva próxima.

Em sua família de três pessoas, os pais de Brodsky deixaram para seu filho a menor parte do cômodo. Dividir o espaço em dois não era permitido por lei, mas, à medida que foi crescendo e precisando de mais privacidade, Brodsky construiu um pequeno espaço particular, reposicionando os altos guarda-roupas da família e arrancando a parte posterior de um deles, para que os visitantes pudessem usá-lo como entrada. Em seu ensaio de 1985, ele escreveu: "Esses dez metros quadrados eram meus, e foram os melhores dez metros quadrados que eu já conheci."

Joseph Brodsky saiu da União Soviética, onde nasceu, e mudou-se para os Estados Unidos, onde morreu. Foto: Mary Gelman/The New York Times

Depois da morte de Brodsky, o proprietário daquele cômodo, negociante da Geórgia, sabia de seu valor comercial, para não dizer artístico. Estabeleceu um preço exorbitante – mais de US$ 250 mil. Quando Milchik conseguiu levantar esse valor, o negociante pediu mais US$ 75 mil.

Há uma década, a fundação de Milchik já era proprietária de todos os quartos do apartamento coletivo, exceto o de Fyodorova. Não era possível abrir o museu sem o adquirir, e essa última peça do quebra-cabeça se mostrou a mais difícil de encaixar.

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Embora seu quarto não tivesse pertencido a Brodsky, ela era coproprietária das áreas comuns de que o museu precisava para entrar em atividade. E Fyodorova, compreensivelmente, não estava disposta a permitir que multidões de visitantes do mundo todo pisoteassem sua cozinha enquanto ela fazia o jantar ou falassem de rimas ao lado da banheira enquanto ela lavava o cabelo. Sempre que alguém tentava dar uma olhada no lugar, Fyodorova rugia: "Visitantes não são permitidos!"

Os amigos de Brodsky, algumas autoridades locais e benfeitores particulares fizeram inúmeras tentativas de convencer Fyodorova a vender, mas ela permanecia irredutível.

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Empacados nessa querela coletiva, Milchik e Gordin tentaram diversas soluções. Colocaram webcams no cômodo de Brodsky, para permitir visitas virtuais, o que não foi suficientemente satisfatório. Em 2015, convenceram Fyodorova a permitir que o quarto de Brodsky fosse aberto por apenas um dia, para celebrar o que teria sido seu aniversário de 75 anos. A fila para entrar tomou todo o quarteirão.

O impasse continuou até 2017, quando Maksim Levchenko, magnata imobiliário local, resolveu se envolver. Primeiro, tentou seduzir Fyodorova. Até tirava seu lixo.

Fyodorova continuava irredutível, mas sugeriu outra solução. Ela contou que um apartamento adjacente havia sido colocado à venda, e que seria possível conectar os dois apartamentos e permitir o acesso ao espaço de Brodsky sem perturbar sua privacidade.

Levchenko comprou o tal apartamento por US$ 500 mil. "Dinheiro não é um bom parâmetro de avaliação", disse ele sobre a importância de oferecer um espaço público ao legado de Brodsky. O museu finalmente tornou-se possível, mas ainda faltavam itens para expor.

Embora Brodsky tenha escolhido jamais voltar a São Petersburgo, um de seus pertences mais queridos o fez. Em junho, a corpulenta escrivaninha marrom que ele usara no Brooklyn foi remontada.

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A escrivaninha que Brodsky usava enquanto morou nos Estados Unidos está em exposição. Foto: Mary Gelman/The New York Times

Alguns outros itens foram preservados por seus amigos em sua cidade natal. Em 1984, depois da morte dos pais de Brodsky, Gordin recolheu os livros, os documentos e alguns móveis do poeta. "Em 1984, ainda estávamos em uma época profundamente soviética, e não podíamos imaginar que pudesse haver um museu naquele local. Mas eu tinha a estranha sensação de que tudo aquilo precisava ser preservado", contou Gordin, de 85 anos.

Em 1990, depois de consultar Brodsky, Gordin doou o que tinha guardado a bibliotecas e museus russos. Isso gerou um problema: todos os itens agora pertenciam ao Estado russo, e não podiam ser transferidos para um museu privado. A escrivaninha do Brooklyn, emprestada por outro museu, foi instalada para uma exposição temporária.

Graças aos amigos do poeta, no entanto, há fotos do quarto de Brodsky antes que este emigrasse.

Tendo em mãos somente alguns poucos itens pertencentes a Brodsky, os curadores do museu decidiram manter seu espaço memorial praticamente vazio, embora haja uma biblioteca, um auditório e um espaço para exposições temporárias.

A parcimônia do museu não desanima os visitantes. Andrei Khapayev, de 41 anos, especialista em TI de Moscou, que esperou semanas para conseguir o ingresso, disse: "Este espaço é muito importante para mim."

Apesar do sucesso entre os visitantes, o futuro do museu não é nada certo. Levchenko é o proprietário do apartamento que dá acesso ao espaço memorial, que por sua vez pertence à fundação encabeçada por Milchik. O relacionamento dos dois? Tenso.

E não nos esqueçamos de Fyodorova. Ela ainda reside do outro lado da parede e pode desligar a eletricidade a qualquer momento.

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"Estamos fadados a uma coexistência pacífica", afirmou Milchik.

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