Leonardo da Vinci, o mestre da transformação, brilha no Louvre

Acervo de 160 obras, incluindo pinturas, desenhos e cadernos, mostra a mão e a mente do grande artista em ação constante

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Por Holland Cotter
Atualização:

PARIS - Em se tratando de artes visuais, a retrospectiva de Leonardo da Vinci no Louvre é o equivalente a uma saudação com salva de tiros de 21 armas acompanhada da fanfarra de trompetes e trombones. Mas, em suas tonalidades, a mostra, em honra aos 500 anos da morte de Leonardo, é mais silenciosa, menos súbita e melhor.

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É também o rastro de fumaça de um talento que tem sido usado como ideal romântico de como deve ser um Grande Artista, mas que se descolou muito desse ideal; que se identificava acima de tudo como um homem de ciência; que passou tanto tempo escrevendo quanto produzindo arte e que ignorava (e perdia) prazos de obras encomendadas quase até o dia de sua morte.

Esse dia foi 2 de maio de 1519. E sua morte, aos 67 anos, ocorreu na França, onde ele passou seus últimos anos como artista da corte do rei Francisco 1º. A residência de Leonardo lá ajuda a explicar por que uma porcentagem tão alta das obras que sobreviveram - entre 15 e 20 pinturas são atribuídas a ele, geralmente - acabaram na coleção do Louvre, o que, por sua vez, ajuda a explicar por que esse tributo está acontecendo na França e não na Itália, sua terra natal.

Sabemos algo a respeito da trajetória de vida do artista a partir de fontes contemporâneas, principalmente pela fascinante (mas por vezes deturpada) minibiografia de Giorgio Vasari. Aprendemos que Leonardo nasceu da união extraconjugal entre uma jovem filha de fazendeiro e um tabelião em ascensão que nunca o reconheceu como filho. Vasari nos conta que o jovem Leonardo era belo, magnificamente habilidoso na matemática e, após ter sido publicamente acusado de abusar de um rapaz mais novo, se mostrava discretamente (e até enfaticamente) gay.

“Cristo e São Tomé”, uma escultura do mestre de Leonardo, Andrea del Verrocchio, é parte da retrospectiva. Foto: Dmitry Kostyukov para The New York Times

Ele era um sujeito complicado. Alegre e obscuro, generoso e sovina, autoconfiante e inseguro. Junte tudo e temos o retrato de um carismático outsider. A mostra, que exibe cerca de 160 trabalhos e vai até 24 de fevereiro, mergulha fundo no começo de sua carreira, como aprendiz na oficina do pintor e escultor Andrea del Verrochio. E, no centro da galeria de entrada, é exibida uma das principais obras de Verrocchio, a escultura de bronze em tamanho maior que real Cristo e São Tomé.

Forjada quase em um só pedaço de metal e considerada uma maravilha da engenharia em sua época, a obra é uma lição concreta da mescla entre realismo e graciosidade que define a arte florentina do século 15; assim como os cerca de dez estudos de tapeçaria instalados nas paredes ao seu redor - alguns de Verrocchio, o mestre; alguns de Leonardo, o estudante.

Por cerca de 40 anos, a carreira de Leonardo perpassou a Florença dos Medici, a Milão ascendente e a Roma papal para, finalmente, levar o artista à França. As encomendas apareceram cedo, rapidamente. Para cada projeto, Leonardo esticava o prazo de entrega até o limite - e muito além. Havia certas pinturas que eram finalizadas, às vezes por assistentes. 

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A pintura de retábulo Virgem das Rochas, produzida em duas variações, foi uma delas. A versão do Louvre, mais antiga, pintada entre 1483 e 1485, da qual o artista participou totalmente, estabeleceu a “aparência" básica as obras de Leonardo: um tipo de super-realismo mágico e fantástico, ainda que minucioso à observação.

Leonardo manteve a Mona Lisa - obra que parecia estar aparentemente em progresso - consigo, bem como outras pinturas, como São Jerônimo no Deserto, emprestado do Vaticano. Os curadores da mostra também incluíram dezenas de desenhos de estudos do artista.

Neles, vemos a mão e a mente de Leonardo em ação. E vemos essa ação em busca constante pelo movimento, em uma galeria devotada ao seu trabalho científico experimental, que ele considerava sua mais significativa realização, o legado pelo qual ele queria ser lembrado.

Esse material foi registrado em grande parte em cadernos de notas que a mostra dividiu em categorias disciplinares: anatomia humana, botânica, zoologia, cosmologia e engenharia. As imagens desenhadas são ao mesmo tempo precisas e poéticas - um crânio humano cheio de personalidade; uma confusão de filhotes de gato; uma ondulante flor de estrela-de-Belém; o primeiro helicóptero do mundo - todas as imagens acompanhadas de textos, ou completamente envolvidas pelas palavras.

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E então, essa exposição profundamente conceitual, que sofre para tornar clara a vida e arte de Leonardo, é encerrada com mistério, nas imagens finais que acompanham o espectador na última sessão. Uma delas é um retrato de perfil de Leonardo, feito com giz vermelho pelo artista Francesco Melzi, seu assistente de longa data. A partir dele, Leonardo olha impassível para a sala, na direção de um desenho de sua autoria chamado O Dilúvio.

Feito provavelmente um ou dois anos antes de sua morte, o desenho é uma explosão gestual, uma imagem turbulenta - catastrófica? Em êxtase? - de um mundo devastado pelo vento e inundado pela chuva, possuído pelo processo de vir a ser ou se despedaçar. Não sabemos qual. Para ele, ambos eram a mesma coisa. A transformação - da luz à sombra e de volta à luz - era uma manifestação de Deus e o motor de sua arte. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

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