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A maconha medicinal não é regulada como a maioria dos medicamentos

A indústria carece de ensaios clínicos randomizados controlados que possam estabelecer claramente os benefícios e riscos

Por Jane E. Brody
Atualização:

Das pessoas que conheço, Dan Shapiro foi a primeira a fazer uso da maconha medicinal. Ele cursava o terceiro ano do Vassar College, em 1987, e, para tratar um linfoma de Hodgkin, estava sendo submetido a uma potente quimioterapia que causava náuseas e vômitos graves. Quando ficou sabendo que fumar maconha poderia aliviar o angustiante efeito colateral, sua mãe, que sempre havia cumprido a lei, plantou um jardim ilegal de maconha no seu quintal, em Connecticut, para ajudar o filho.

Décadas depois, a maconha medicinal se tornou um fenômeno nacional amplamente aceito. Embora a planta rica em produtos químicos, botanicamente conhecida como Cannabis sativa, continue sendo uma substância controlada pelo governo federal, seu uso terapêutico agora é legal em 36 estados e no Distrito de Colúmbia.

Ilustração de Gracia Lam/The New York Times. 

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No entanto, especialistas nas muitas áreas em que a maconha medicinal é considerada útil raramente conseguiram demonstrar os supostos benefícios em estudos científicos bem elaborados. E eles alertam que o que agora está sendo vendido legalmente como maconha medicinal em farmácias em todo o país é tudo menos a substância segura e pura que os americanos geralmente esperam encontrar quando são tratados com medicamentos licenciados.

Por exemplo, em Oregon, onde tanto a maconha recreativa quanto a medicinal podem ser vendidas legalmente, toda maconha recreativa deve ser testada para verificar a presença de pesticidas e solventes, mas esses testes não são exigidos para a maioria dos produtos de maconha medicinal, apontou uma auditoria da Secretaria de Estado publicada em janeiro de 2019. A Autoridade de Saúde do Oregon não exige testes para verificação da presença de metais pesados e micróbios que podem adoecer os usuários.

Na verdade, a maioria das mesmas preocupações de saúde levantadas há décadas em relação ao uso terapêutico da maconha ainda não foi resolvida, mesmo que a potência do ingrediente intoxicante da planta, o tetra-hidrocanabinol, mais conhecido como THC, tenha quintuplicado. Além disso, o uso médico exclusivo é incomum; em um estudo canadense com 709 usuários de medicamentos, 80,6% também relataram fazer uso recreativo de maconha.

"As pessoas estão usando uma desculpa médica para sustentar o consumo recreativo de maconha", disse Kenneth Finn, especialista em gestão da dor em Colorado Springs, no Colorado, e editor de um novo livro profissional de 554 páginas sobre o assunto, Cannabis in Medicine: An Evidence-Based Approach (A cannabis na medicina: uma abordagem baseada em provas, em tradução literal).

Os defensores da maconha medicinal argumentam que a cannabis é relativamente segura e menos cara que os produtos farmacêuticos licenciados e é frequentemente usada em condições para as quais as terapias eficazes são insuficientes ou inadequadas. Os opositores afirmam que o que mais falta são produtos padronizados de maconha e ensaios clínicos aleatórios e controlados que possam definir com clareza quais são os benefícios e os riscos.

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A prova – ou a falta dela – de benefícios à saúde que podem ser atribuídos de forma confiável ao ato de fumar, vaporizar ou ingerir a maconha, mesmo em sua forma mais pura, é descrita em detalhes no livro de Finn.

"Os componentes da planta de cannabis podem ajudar em várias condições, mas não é isso que as pessoas estão comprando nas lojas. Vamos pesquisar por canabinoides purificados, naturais e não contaminados", comentou ele em uma entrevista, referindo-se aos vários produtos químicos potencialmente terapêuticos da maconha.

Três dessas substâncias foram aprovadas pela FDA (agência federal norte-americana responsável pelo controle de alimentos e remédios). Uma delas, o Epidiolex, medicamento líquido à base de canabidiol, foi aprovado para tratar duas formas de epilepsia infantil grave. Os outros, o dronabinol (Marinol, Syndros) e o nabilone (Cesamet), são comprimidos usados para conter a náusea em pacientes com câncer submetidos a quimioterapia e para estimular o apetite em pacientes com aids com quadro de caquexia. Outro medicamento à base de maconha, o nabiximol (Sativex), está disponível no Canadá e em vários países europeus para tratar a espasticidade e dores nos nervos em pacientes com esclerose múltipla.

A cannabis medicinal não é um agente terapêutico novo. Foi amplamente utilizada como medicamento patenteado nos Estados Unidos durante o século XIX e o início do século XX e foi listada na Farmacopéia dos EUA até a aprovação da Lei de Imposto sobre a Maconha de 1937, que a tornou ilegal.

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Em seguida, uma lei federal de 1970 a tornou uma substância controlada de Tabela 1, o que restringia bastante o acesso à maconha para pesquisa legítima. Outro fator que também contribui para complicar as tentativas de definir sua utilidade médica é que plantas como a maconha contêm centenas de substâncias químicas ativas, cujas quantidades podem variar muito de lote para lote. A menos que os pesquisadores possam estudar substâncias purificadas em quantidades conhecidas, as conclusões sobre os benefícios e riscos são altamente questionáveis.

Conforme recontado no livro de Finn, aqui estão algumas conclusões alcançadas por especialistas sobre o papel da maconha medicinal em seus respectivos campos:

Gestão da dor

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As pessoas que usam maconha para o alívio da dor não reduzem sua dependência dos opioides. Na verdade, segundo Finn, "os pacientes que tomam narcóticos e que também usam a maconha para a dor ainda relatam que seu nível de dor é dez em uma escala de um a dez".

Os autores do capítulo sobre a dor, Peter R. Wilson, especialista em dor da Clínica Mayo, em Rochester, Minnesota, e Sanjog Pangarkar, do Serviço de Atendimento à Saúde dos Veteranos da Grande Los Angeles, concluíram que "a cannabis em si não produz analgesia e, paradoxalmente, pode interferir na analgesia opioide". Um estudo de 2019 com 450 adultos, publicado no Journal of Addiction Medicine, revelou que a maconha medicinal não só não foi capaz de aliviar a dor dos pacientes, mas aumentou o risco de ansiedade, depressão e abuso de substâncias.

Esclerose múltipla

Allen C. Bowling, neurologista do Instituto NeuroHealth, em Englewood, no Colorado, observou que, embora a maconha tenha sido amplamente estudada como um tratamento para a esclerose múltipla, os resultados dos ensaios clínicos randomizados foram inconsistentes.

Os testes gerais apresentaram uma eficácia limitada, e, em um dos maiores e mais longos testes, o placebo teve melhor desempenho no tratamento da espasticidade, da dor e da disfunção da bexiga, escreveu Bowling. A maioria dos ensaios clínicos usou a cannabis de qualidade farmacêutica, que não está disponível em drogarias.

Glaucoma

O estudo que sugere que a maconha pode reduzir o risco de glaucoma data de 1970. Na verdade, o THC diminui a pressão prejudicial dentro do olho, mas, como escreveram Finny T. John e Jean R. Hausheer, oftalmologistas do Centro de Ciências da Saúde da Universidade de Oklahoma, "para atingir os níveis terapêuticos de maconha na corrente sanguínea para o tratamento do glaucoma, um indivíduo precisaria fumar cerca de seis a oito vezes por dia, e provavelmente ficaria física e mentalmente incapaz de realizar tarefas que requerem atenção e foco", como trabalhar e dirigir. As principais sociedades médicas de cuidados oftalmológicos não aceitam o uso da maconha para o tratamento do glaucoma.

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Allison Karst, especialista em farmácia psiquiátrica do Sistema de Saúde VA Tennessee Valley, que revisou os benefícios e riscos da maconha medicinal, concluiu que ela pode ter "um efeito negativo na saúde mental e na função neurológica", incluindo o agravamento dos sintomas de estresse pós-traumático e de transtorno bipolar.

Karst também citou um estudo que mostra que apenas 17% dos produtos comestíveis de cannabis são rotulados com precisão. Em um e-mail, ela escreveu que a falta de regulamentação "leva à dificuldade de extrapolar as provas disponíveis para os vários produtos no mercado, por conta das diferenças na composição química e na pureza". Ela recomendou que as pessoas pesem "tanto os benefícios quanto os riscos em potencial", aos quais eu acrescentaria o caveat emptor – ou seja, "tome cuidado, comprador".

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