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Modern Love: O que ele não me contou

Nós nos conhecemos em um aplicativo de namoro, onde faltavam alguns detalhes cruciais em seu perfil

Por Sadaf Qureshi
Atualização:

No início, ele era um conto de fadas. Mais tarde, um vício. Nós nos conhecemos à moda antiga - em um aplicativo de namoro muçulmano. Deslizei para a direita. Porque ele tinha olhos gentis, ou porque uma frase aleatória de seu perfil ressoou em mim. Porque ele entendeu a diferença entre “seu” e “você é”.

Não porque eu pensei que ele e eu algum dia nos encontraríamos pessoalmente. Não porque eu pensei que tínhamos potencial. Porque nós não tínhamos.

Nossa conversa começou de uma forma nada original, com ele dizendo: “Oi, e aí?” e eu dizendo: "Oi, nada demais."

Eu não tinha expectativas. Eu estava em Nova Jersey; ele estava em Massachusetts.

Na noite seguinte, ele disse: “É ruim eu já estar planejando minha viagem de Boston?”

Fofo, mas um pouco prematuro. “Você deveria me examinar primeiro. Eu poderia ser perigoso.”

“Quer fazer FaceTime?”

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Ilustração de Brian Rea/The New York Times. 

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Eu não queria. Eu tinha acabado de chegar em casa do trabalho. Eu não tinha comido. Eu já tinha tirado minha maquiagem e colocado uma camiseta grande e um moletom. Mas eu disse: “Claro”.

Eu tinha me recuperado recentemente de uma série de palestras de minha mãe sobre como eu precisava me concentrar em minha vida pessoal. Ela disse que eu, aos 30 anos, estava ficando velha. Era hora de se casar. E eu concordei. Eu queria. Eu só não tinha conhecido o cara certo. Eu estava tentando. "É difícil aqui", eu disse.

Minha mãe não estava interessada em desculpas. Passei quase a última década focando em meu treinamento médico, mas o fim do treinamento estava próximo e eu precisava redefinir as prioridades.

Ele estava jantando quando ligou. Por alguns minutos, tentei ser agradável e doce. Eu concordei com tudo o que ele disse. Eu pensei em ser breve. Mas não estava nem um pouco cansada. A cada palavra que ele falava, eu ficava mais hipnotizada.

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Ele era bonito, bem-educado, bem-sucedido. Sua voz era grave na medida certa. Ele me deixou tímida, mas não nervosa. Confortável, mas não entediada. E ele parecia me adorar, quase instantaneamente. A partir de então, eu ansiava por sua adoração.

Uma pandemia nos proporcionou um tipo acelerado de intimidade. Quando conversamos pelo FaceTime, nunca foi por menos de quatro horas. Nós comemos juntos. Adormecemos juntos. Sonhamos juntos.

Ele me contou sobre a partida de seu pai quando ele era criança e as lutas de sua mãe. Contei a ele sobre minha história de distúrbios alimentares. Ele recitou poesia urdu e me enviou canções de Bollywood enjoativas e românticas. Tentei convencê-lo dos méritos de T.S. Eliot. Em Hemingway e Fitzgerald, concordamos. Eu não me sentia tão bem com ninguém há muito tempo.

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Eu não tinha certeza de como isso tinha acontecido. Ou por que ele gostava de mim. Eu não achava que eu fosse o tipo dele. Sua conta no Instagram estava cheia de comentários de mulheres voluptuosas cheias de maquiagem, fora do comum, sendo divertidas e extrovertidas e desinibidas.

Eu tinha seios achatados, usava aparelho e não possuía uma única peça de lingerie. Escolhi ler romances nos meus dias de folga e ainda me machuquei toda vez que tentei depilar os joelhos. Eu nunca estive em um relacionamento real e não acreditava em sexo antes do casamento. Sabendo de tudo isso, ele ainda me olhava como se eu fosse um planeta desconhecido. E eu acreditei naquele olhar.

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Duas semanas depois de nos conhecermos online, ele veio me conhecer. Eu o levei para o único lugar na cidade que eu sabia que tinha queijo grelhado, sua indulgência de escolha. Acabamos do mesmo lado da cabine para que pudéssemos assistir à eleição presidencial na televisão ao lado do bar.

Na volta de carro, ele tirou minha mão do meu colo e pressionou o polegar na parte macia da minha palma como se estivesse cavando um local para plantar uma semente. Ele entrelaçou seus dedos nos meus, segurou minha mão em seu peito, baixou o queixo, fechou os olhos, pressionou os lábios contra meus dedos.

Eu estava com medo de me mexer. Eu estava com medo que ele soltasse. Eu senti como se estivesse segurando seu mundo inteiro em meu pequeno punho, e eu queria mantê-lo lá pelo maior tempo que pudesse.

Mas se a pandemia nos proporcionou um mundo de sonhos isolado, também permitiu algumas cortinas de fumaça. Eventualmente, nós brigamos. Ele era a única pessoa com quem eu não tinha medo de ficar com raiva, o que parecia empoderador. Ele era esquisito na hora de fazer planos. Não confiável na hora de retornar chamadas telefônicas. Inconsistente em sua afeição. Muito misterioso por muito tempo.

Ele disse que havia coisas que ele não havia me contado, mas que eventualmente contaria. Eu já tinha descoberto sua idade real através de uma busca superficial no Google - 41 e não 36. Na verdade, eu sabia antes de saber. Ele era muito cheio de anedotas e conselhos, muito bem-sucedido e um pouco exausto para ter 36 anos. Ele não foi o primeiro a mentir em um aplicativo de namoro, e uma diferença de idade de 11 anos não me perturbou, mas eu estava com medo do que mais poderia ser descoberto.

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Encontrei o que procurava nos arquivos de uma página do Facebook. Eu não tinha ido lá com a intenção de investigar. Parecia natural que, depois de meses com ele, devêssemos pelo menos ser amigos em várias plataformas de mídia social. Mas quando encontrei sua conta e rolei a tela, pisei em uma rachadura em um piso de vidro e caí - até 2014.

Uma mulher o havia marcado em uma foto de uma criança distribuindo garrafas de água em uma mesquita. Ele não tinha sobrinhas. Achei um pouco estranho. Cliquei no perfil da mulher e rolei até um post que dizia “Pessoal, mandem seus malditos RSVPs ou fiquem em casa… sim, é a Noiva neurótica falando!” sob o qual ele comentou: "Tem todo meu apoio, garota!"

Outro post dizia: “Escola, exames, casamento … estressada”, sob o qual ele escreveu: “Não se preocupe, amor … estou indo”. Havia mais. Ele dizendo a ela que sentia falta dela naquele dia ou que ela era mais fofa do que alguma atriz de Bollywood. Ele a chamando de “minha querida”.

Meu coração afundava a cada palavra.

Eu queria ficar furiosa. Eu queria não querer nada com ele nunca mais. Mas, em vez disso, me senti fisicamente doente, com uma espécie de angústia inabalável. A angústia de ser deixada sozinha no primeiro dia em uma nova escola. O desespero de esperar pelos resultados de um exame em que você sabe que não passou, só que amplificado a ponto do desespero.

Ele tinha um filho? E uma ex-mulher, ou talvez uma esposa? Por favor, não uma esposa. Teria sido tudo coisa da minha cabeça? Ele estava brincando comigo esse tempo todo? Quem eu era para ele, afinal? Eu ainda queria que ele me quisesse. Que me escolhesse. E eu não sabia mais por que eu queria essas coisas.

Ele ligou meia hora depois. Ele estava andando pela cozinha e divagando sobre alguma coisa. Eu mal conseguia registrar uma palavra. Eu concordava agradavelmente. Eu fiquei quieta a maior parte do tempo. Não sou boa em fingir estar bem.

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“O que você tem?” ele disse.

“Você já foi casado?”

Ele parou de andar. "O que? Por quê?"

“Achei sua página no Facebook.”

“Eu me casei e depois me divorciei.” Ele desviou o olhar, mergulhou a cabeça na mão, empurrou para trás o cabelo comprido. "Você sabe tudo agora", ele disse com um suspiro. E então a bateria dele acabou. Ou ele desligou. Ou a conexão caiu. Tudo o que eu sabia é que ele tinha ido embora. Tentei ligar de volta para ele, de novo e de novo, até que percebi que aquilo realmente poderia ter acabado.

Ele ignorou todas as chamadas e mensagens de texto por dias. Eu me senti como um mergulhador que está constantemente tentando respirar, mas continua sendo sugado de volta para baixo. Como alguém que não era ninguém para mim em setembro se tornou tão indispensável em janeiro?

Eu tinha crescido voluntariamente independente. Inabalável na minha certeza de que só poderia depender de mim mesma, de que tinha dentro de mim tudo o que alguma vez necessitaria. Eu sabia que não precisava dele, mas de alguma forma a fronteira entre necessidade e desejo estava se dissolvendo. Eu o queria porque precisava ser essa versão menos inibida e mais liberada de mim mesma, e não tinha certeza de como fazer isso sem ele.

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Algumas semanas depois, ele ligou. Ou liguei e ele finalmente atendeu. Eventualmente, ele se desculpou. Ou eu pedi desculpas e ele disse algo doce, e eu quase esqueci do que eu queria que ele se desculpasse. Era verdade - ele era divorciado e pai. Mas, em algum lugar ao longo do caminho, esta se tornou minha versão do Príncipe Encantado.

Conversamos por horas. Era como chegar em casa novamente depois de andar sem rumo por dias. Não havia mais nada a esconder. Talvez isso seja tudo o que há para esperar. Talvez isso seja tudo o que o amor é. Um apego que não depende de nada.

Nem todo amor é feito para durar. O nosso não foi. Mas ele nunca está totalmente perdido, embora possa ser esculpido em um momento finito no tempo. Um fogo apagado cujas brasas brilham silenciosamente dentro de nós. /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

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