Modern Love: 'Quanto da minha história devo compartilhar?'

Quando uma ex-stripper se casa com um futuro pastor, ela fica em silêncio sobre seu passado - por um tempo

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Por Amy Mevorach
Atualização:

Meu marido e eu nos casamos em uma igreja presbiteriana em Watkins Glen, Nova York, às margens do Lago Seneca. Era junho de 2006, três meses antes dele começar o seminário e cinco anos e meio depois de eu ter abandonado a indústria do sexo. Eu considerava nosso casamento a união da ex-stripper com o futuro pastor.

Após o casamento, acompanhei os contornos de sua carreira com a flexibilidade e a harmonia de um nado sincronizado. Deixei meu emprego em um jornal de Vermont e me mudei para Boston, onde ele se matriculou na escola de teologia. Enquanto ele estudava, eu lia livros que me diziam como ler o Livro, como viver o Livro.

Ilustração de Brian Rea/The New York Times. 

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Para cruzar o Jordão, li, devemos morrer, simbolicamente. Devemos nos entregar, nos deixar ir e sermos incorporados por Cristo. Abandonei todos os meus amigos, abandonei minha música Blues (sexy demais) e a música celta (muitas menções a uísque) e minhas roupas iridescentes justas.

Meus brinquedos sexuais e algemas foram direto para o lixo. A mobília que eu possuía foi expurgada de nossas vidas, ficou na varanda dos fundos antes de jogarmos cada peça no lixo. Expurgada da minha vida anterior, recomecei, guiada por esse homem de 22 anos, sete anos mais novo que eu, que fazia de Jesus seu negócio.

Ele pensou que estava me salvando, e eu pensei que precisava ser salva.

Na minha experiência, o trabalho sexual e o cristianismo não eram incongruentes. Eu dancei apenas por alguns meses, em São Francisco e Nova York, para conseguir pagar meu aluguel entre a faculdade e meu trabalho como desenvolvedora web, mas a vergonha e a culpa que sentia por me despir se encaixavam perfeitamente no meu papel de boa esposa cristã. Em ambos os casos, confiei nas percepções dos outros para definir meu valor.

Nosso primeiro bebê nasceu no inverno e, no verão seguinte, moramos em um acampamento batista de verão, onde meu marido trabalhava como diretor da orla.

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Todos os dias eu atravessava o acampamento com o bebê em um carrinho de passeio, trepidando pelo caminho rochoso até o lago onde meu marido ficava em uma doca o dia todo observando a água. Depois do jantar, ele pulava dentro de um cercado octogonal e jogava gaga ball com meninos de 11 anos enquanto eu me retirava para o nosso quarto para amamentar o bebê porque não tinha permissão para amamentar na frente dos campistas.

À noite, os funcionários davam testemunhos de suas jornadas cristãs e lideravam cantigas, fogueiras e shows de talentos. Quando meu marido ia para a cama, o bebê e eu estávamos dormindo. Quando acordávamos às 7 da manhã, ele já tinha saído.

Eu li a Bíblia naquele verão, do Gênesis ao Apocalipse. Eu memorizei as escrituras. Certa noite, cheguei à capela onde meu marido estava pregando para os campistas e o ouvi palestrar sobre o Levítico, capítulo 11. Tudo bem, ele disse, comer grilos e gafanhotos, mas não moscas. Gafanhotos são um lanche aceitável, mas o camarão é proibido. Se você pegar um porco morto, você deve lavar suas roupas.

Os campistas estavam extasiados, e eu pensei: “Ele é brilhante, a maneira como relaciona a Bíblia com as crianças”.

Não contei a ninguém que estava com medo de que a comunidade cristã me rejeitasse se soubessem que eu costumava ser uma stripper. Meu marido me disse que sua carreira dependia de nossa reputação coletiva.

A esposa do diretor do acampamento comia em nossa mesa. Ela era robusta, com um rosto redondo e rugas sob os olhos, e ela era acessível, o que significava que ela reconhecia que eu existia e me cumprimentava de uma maneira mal-humorada, mas alegre.

“Se eu der um testemunho”, perguntei a ela, “quanto da minha história devo compartilhar?”

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Meu testemunho, eu havia reunido, era a história de minha jornada cristã, com respostas a estas perguntas: Quando fui batizada? Quando entreguei minha vida a Cristo? Quando eu aceitei Jesus como meu Senhor e salvador?

Fui batizada ainda bebê e novamente com meu marido, imersão total, totalmente vestida, um mês depois que nossa filha nasceu. Eu havia entregado minha vida a Cristo na Igreja Missionária em Somerville, Massachusetts, dois anos antes.

O testemunho também incluía a pergunta: Quando você concluiu que deve haver uma luz para nos tirar dessa densa escuridão? Quando você se sentiu tão errada que decidiu dar meia-volta e se arrepender? Foi no porão do Paradise Club, quando um homem a puxou para baixo e a apalpou?

A esposa do diretor do acampamento revirou os olhos e disse: “Bem, isso cabe a você decidir”.

Meu testemunho completo, pensei, pode ter um valor chocante semelhante à história que um homem da equipe da cozinha contou aos novos campistas sobre colocar uma arma na cabeça e ouvir uma voz dizer: “Eu te amo”. Eu me perguntei que tipo de choques eles estavam dispostos a aceitar. Eles acreditavam que strippers poderiam ser salvas?

Alguns trabalhos são água, e alguns são vinho. Alguns evaporam sem deixar vestígios e outros deixam uma mancha.

Os estudos bíblicos eram separados por gênero, então fui ao estudo bíblico das mulheres e disse a elas que estava sozinha, que precisava de um mentor ou alguém com quem pudesse conversar sobre meu caminho espiritual. Elas ouviram com os olhos arregalados, depois os fecharam e rezaram para que eu encontrasse alguém. Por “alguém”, elas queriam dizer outra pessoa.

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Na vertigem solitária, encontrei Jesus. Todas as manhãs, eu me esgueirava pelos fundos da capela de toras, levantava as mãos e cantava canções de amor para Jesus. Ficava no último banco, separada dos campistas, balançando meu bebê se ela estivesse acordada ou, se estivesse dormindo no carrinho reclinado, rezando para que o canto não a acordasse. Junto com as meninas e os meninos de camisetas tie-dye e cabelos desgrenhados, cantei baixinho com um acompanhamento eletrônico: “Abra os olhos do meu coração, Senhor”.

Funcionou. Os olhos do meu coração se abriram e choraram. Meu coração doía, e tudo isso - o isolamento, o anonimato, a preocupação, a dor de ver, mas nunca ser vista, enquanto eu empurrava o carrinho de uma estrada para outra, matando moscas que mergulhavam na minha cabeça, até mesmo o choque de que esta vida tinha se acomodado sobre mim como um cobertor e abafado minha faísca - tudo isso eu atribuí a Jesus.

Fiquei triste porque tinha pecado. Eu estava sozinha porque estava separada de Deus. Todas as manhãs eu ficava na parte de trás da capela e cantava: “Aqui estou para adorar”, uma mão tentando alcançar o vitral.

Se eu pudesse me humilhar o suficiente para receber Jesus em meu coração, morrer para este mundo e renascer como um raio de luz puro e sem pecado, o eu ressuscitado seria uma membrana diáfana iluminada como uma lanterna cujo brilho não é eclipsado pela carcaça de uma mariposa imolada.

Se eu pudesse me submeter a Jesus, talvez pudesse me submeter ao meu marido, como a Bíblia recomenda.

Eu tentei tanto ser boa. Acalmar os bebês à noite para que ele pudesse dormir profundamente antes de suas provas. Sorrir educadamente quando um homem dizia: “Atrás de todo grande homem há uma grande mulher”, em vez de perguntar por que eles ficam na nossa frente.

Eu me sentia invisível. Da hiperexposição da pele nua em um palco iluminado, eu me arrependi e me refiz como esposa de pastor. O pêndulo oscilara de um extremo a outro, e nenhum dos dois parecia autêntico.

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Não sei como a comunidade cristã do acampamento teria reagido ao meu breve período como stripper, porque nunca dei um testemunho. Meu medo deles antecipou seu julgamento sobre mim. Eu nunca lhes dei a oportunidade de me aceitar.

Ser stripper não é inerentemente vergonhoso; pensando nas polaridades do bem e do mal, atribuí vergonha a isso. Em ambos os extremos, senti-me incompleta, preferindo categorizar meu comportamento como totalmente ruim ou totalmente bom. Eu olhava para o meu marido como minha “outra metade”. Quando eu me sentia suja, ele parecia santo. Quando me considerava virtuosa, só via seus defeitos.

O casamento durou 15 anos. Como mãe divorciada, relaxei em minha própria pele e aprendi a ver com meus próprios olhos - a olhar, não a parecer; ser, não representar. Já não me ajusto de acordo com o meu reflexo nos olhos dos outros.

Meu corpo mudou desde que dancei em clubes há mais de duas décadas. Dar à luz a quatro filhos levou minha barriga do tanquinho a uma espécie de bola. É o corpo de uma mãe. É o meu corpo, para abraçar e ser abraçado com amor. /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

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