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'Você deveria terminar comigo'

A vida pode ser passageira. Ela queria ter certeza de que ele sabia dos riscos de se relacionar

Por Marjorie S. Rosenthal
Atualização:

Meu marido, Amal, passava muito tempo em helicópteros, com sua gravata borboleta compondo seu uniforme de voo. Isto foi em Baltimore onde ele e eu éramos pediatras. Amal trabalhava na unidade de terapia intensiva de um hospital e parte do seu trabalho era transportar crianças muito doentes que precisavam ser transferidas para o hospital por via aérea.

Quando manifestei minha preocupação com o seu trabalho, ele me disse que mais pessoas morriam em carros do que em helicópteros. Mas então, há quatro anos, com dois filhos do nosso casamento, eu vi o pneu traseiro esquerdo do carro que ele dirigia explodir, o veículo rodopiar duas vezes e o esmagar. A dor que me acompanhou foi como estar perto de uma das aterrissagens de helicóptero de Amal – um redemoinho de barulho e confusão.

Brian Rea The New York Times 

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Nos anos que se seguiram após sua morte, meu sofrimento diminuiu – o bastante para eu pensar em namorar um engenheiro de helicópteros. Brian enviou-me um e-mail pelo Match.com, 13 anos após a morte de Amal. Seu nome de perfil era "RelaxExhale" (RelaxaExpira, em tradução livre) e ele me escreveu dizendo acreditar no método cientifico.

Uma pessoa com mente científica e praticante de ioga parecia ser um bom parceiro para mim. Pelo telefone, soube que o nome "RelaxExhale" não tinha nada a ver com ioga. Mas, na época, eu vivia em New Haven, Connecticut, e nosso primeiro encontro foi numa manhã quente de domingo numa cafeteria chamada Café Romeo.

“Acho que você não é como a pediatra dos meus filhos”, disse ele. “Você faz outra coisa”.

Claramente ele tinha me pesquisado no Google.

“Eu atuo como pediatra. Mas também ensino recursos de pesquisa para médicos e enfermeiros que desejam estudar coisas como asma, desabrigados, diabete”.

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“Eu tenho diabete”, disse ele, um tanto entusiasmado demais.

“Tenho câncer de colón”, respondi, o que à primeira vista pareceu uma resposta ridícula, mas naquele momento seria o próximo estágio da conversa. “Tenho um orifício no peito por onde recebo quimioterapia a cada duas semanas. Percebi que estava me abrindo muito para um primeiro encontro. Não só eu era viúva, mas também mãe de duas garotas e com câncer. Vestindo uma saia de linho branca com uma regata rosa, fiquei contente que ele conseguia ver o contorno e o hematoma persistente sobre meu cateter de plástico embutido.

“Eu tenho dois. Quer dizer, não que eu queira superá-la”, e ele levantou sua camisa e me mostrou dois tubos que pareciam um band-aid de alta tecnologia e iam do seu estômago até uma caixa de plástico preta do tamanho de um pager. Não exibi o meu cateter, mas nos declaramos compatíveis o suficiente para um segundo encontro. Planejamos ir, e nadar, até o Parque Estadual Bluff Point, e Brian se ofereceu para ir me buscar de carro.

Sabia que era um tanto arriscado dar a uma pessoa relativamente estranha o endereço da minha casa, mas concordei em sairmos no fim de semana do 4 de julho. Minhas filhas adolescentes estavam em um acampamento por duas semanas em New Hampshire e ele parecia ser uma boa pessoa. Quando vi seu carro chegando, meu coração disparou. Fiquei parada de pé na escada da minha varanda.

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Amal se tornara uma parte de cada relacionamento que eu tive desde que enviuvei. E ali estava ele novamente: Brian conduzia o mesmo modelo de carro que Amal dirigia quando morreu. Quase voltei para dentro de casa, para não entrar no carro, disse a mim mesma: “Relaxe, respire”.

“Eu também acredito na ciência. O fato de serem carros iguais provavelmente é uma mera coincidência”. O caminho de New Haven até o parque estava congestionado. Uma viagem de uma hora se transformou em duas horas. No dia em que Amal morreu, o carro e o pneu defeituosos conspiraram com a velocidade típica das estradas para provocarem o acidente fatal. Amal não teria morrido se o trânsito lento como este, agora, o obrigasse a dirigir mais devagar.

No trajeto, Brian contou longas histórias de viagens e família. E eu respondi com as minhas. Ele ficou interessado na minha vida complicada de viúva, pediatra, com duas filhas adolescentes e com câncer. Foi humano ao se compadecer com a morte de Amal, mas não conseguiu controlar seu lado de engenheiro manifestando sua frustração com o defeito no carro que eu tinha com Amal.

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Numa parte isolada do caminho nos separamos para colocar nossas roupas de banho. Em meio aos arbustos, arrumei minha faixa para ter certeza de que cobria meu cateter. Mas quando nos reunimos vi que minha preocupação foi em vão. Brian corou ao me ver no meu traje de banho. Ele não estava me vendo como uma pessoa com câncer e pensando no meu cateter. Este era um encontro. Depois de nadarmos, Brian examinou um dos seus cateteres, comeu algumas uvas passas e aplicou insulina.

Comemos lagosta em mesas de piquenique perto da praia e mais tarde, em New Haven, tomamos sorvete sentados numa das pequenas mesas de metal na frente do museu de arte. Eu o convidei para o jantar informal programado pelos meus vizinhos. Desta vez, quando chegou de carro, ele trazia uma tigela com salada de batata, receita da sua falecida mãe. Naturalmente eu ri de mim mesma.

Brian precisou trazer uma pessoa morta do seu lado para nosso terceiro encontro. No nosso primeiro encontro, conversamos sobre falar ou não a respeito dos nossos sentimentos. “Como bom irlandês, não gosto de falar sobre meus sentimentos. Talvez eu conte longas histórias difíceis de explicar e entender, portanto não devo”, disse ele. “E como uma boa mulher judia eu falo muito sobre meus sentimentos”, disse.

“Quer saber como me sinto com relação ao meu padrasto?”. Nesse verão falamos muito sobre Amal, sobre a mãe de Brian, meu avô que morreu por causa de diabete, e de todas as pessoas relacionadas conosco e que morreram. Quando íamos à praia e eu via os helicópteros sobrevoando, Brian dizia em quais ele havia trabalhado e para onde estavam provavelmente se dirigindo. Não falei da baixa taxa de sobrevivência do câncer de cólon metastático relacionado com minha própria mortalidade.

Sabia tudo quanto aos sintomas e prognósticos, mas não queria arruinar o que parecia ser uma relação despreocupada e divertida. E ele não perguntou. Quatro meses depois, quando caminhávamos por uma rua repleta de folhas amarelas caídas no chão, eu lhe disse: “Você deveria terminar comigo”.

Meu câncer aumentou, eu tinha de retornar à quimioterapia intensiva e meu cirurgião planejava remover uma grande área do meu cólon, pâncreas e parede abdominal. Brian tinha acabado de voltar da Califórnia e me trouxera brincos com partes de borboletas encaixadas em plástico. Ele jurou que nenhuma borboleta morreu por causa dos meus brincos e eu disse a ele que a decisão certa seria encerrar nosso relacionamento. 

“E se eu realmente adoecer seriamente ou morrer?”, perguntei. “Mas e se você melhorar?”. Quem era esse indivíduo? Uma das primeiras coisas que aprendi a respeito de Brian foi que ele acreditava no método científico. Cada vez que pensava no meu ego saturado de câncer, ele me comparava ao que havia lido e sabia.

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Ele tinha os recursos matemáticos para entender o que uma taxa de 14% de sobrevida por cinco anos significava. Talvez RelaxExhale fosse mais do que um autocoaching para Brian se manter on-line e namorar. Talvez ele fosse um adepto de ioga cujo coração tinha poder de veto sobre sua cabeça de engenheiro. Brian não terminou comigo. E, como previsto, a operação que durou 14 horas me deixou doente, com pancreatite e septicemia.

Tive de voltar à sala de cirurgia por causa de uma pequena obstrução no intestino, e depois disto, durante quatro meses, entrei e saí do hospital. Muitas dessas vezes, Brian me acompanhou até meu quarto, onde tocava seu ukulele, fazia vídeos dublando músicas, e dormia no sofá ao lado da minha cama.

Quando ele precisou realizar uma longa viagem de negócios, ele se livrou do seu carro. Não discutimos quantas vezes entrei naquele carro e me perguntei se ia morrer, ou como a ausência dele agora deu ao câncer uma chance maior de me destruir.

Em um passeio antes da minha cirurgia, tentei fazer Brian compreender que o amor sempre acaba. Acidentes de carro, diabete, câncer. Mas o que aconteceu, na verdade, foi que ele me ensinou que o amor é uma história longa e elíptica. E que, com ou sem os nossos fantasmas, eu tinha a sorte de fazer parte da sua. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO

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