As moscas de fruta e as pessoas que cuidam delas

Manter a maior coleção de drosófilas do mundo durante a pandemia tem sido um desafio, mas as pessoas de Indiana que fornecem os insetos para laboratórios de todo o mundo continuam dedicadas à sua missão

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Por Cara Giaimo
Atualização:

As salas que compõem o Bloomington Drosophila Stock Center na Universidade de Indiana são forradas de parede a parede com prateleiras idênticas. Cada prateleira está repleta de racks uniformes e cada rack tem frascos de vidro indistinguíveis.

Mas as dezenas de milhares de tipos de moscas de fruta dentro dos frascos são magnificamente diferentes. Algumas têm olhos rosa fluorescente. Outras pulam quando você acende uma luz vermelha. Outras ainda têm corpos curtos e asas encaracoladas iridescentes e parecem “pequenas bailarinas”, disse Carol Sylvester, que ajuda a cuidar das moscas.

Frascos virados que contêm moscas da fruta no Bloomington Drosophila Stock Center na Indiana University em Bloomington. Foto: Kaiti Sullivan/The New York Times

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Cada variedade funciona como uma ferramenta de pesquisa única e levou décadas para apresentar as características que a torna útil. Se ficassem sem vigilância, as moscas morreriam em questão de semanas, deixando disciplinas científicas inteiras à deriva.

Ao longo da pandemia de covid-19, trabalhadores de todas as indústrias mantiveram o mundo unido, assumindo grande risco pessoal para cuidar de pacientes doentes, conservar cadeias de abastecimento e alimentar as pessoas. Mas outros trabalhos essenciais são menos conhecidos. No Stock Center, dezenas de funcionários vêm trabalhar todos os dias, com ou sem lockdown, para cuidar das moscas que garantem a continuidade da pesquisa científica.

Mosca pequena, grande impacto

Para a maioria dos observadores casuais, as moscas de fruta são pequenos pontos com asas que ficam rodeando as bananas maduras. Mas, ao longo do século passado, pesquisadores transformaram o inseto - e que a ciência conhece por Drosophila melanogaster - numa espécie de painel de controle genético. Os biólogos ficam desenvolvendo novas “linhagens” de moscas, nas quais genes específicos são ativados ou desativados.

O estudo desses pequenos mutantes pode revelar como os genes funcionam - inclusive em humanos, porque compartilhamos mais da metade de nossos genes com as drosófilas. Por exemplo: os pesquisadores descobriram o que agora é chamado de hippo gene - que ajuda a regular o tamanho dos órgãos tanto em moscas de fruta quanto em vertebrados - depois que moscas com um defeito nesse gene cresceram e ficaram anormalmente grandes e rugosas. Trabalhos adicionais com o gene indicaram que tais defeitos podem contribuir para o crescimento celular não controlado que causa câncer.

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Manter a maior coleção de Drosophila do mundo durante a pandemia tem sido um desafio, mas as pessoas em Indiana que fornecem os insetos para laboratórios em todo o mundo permanecem dedicadas à tarefa. Foto: Kaiti Sullivan/The New York Times

Outros trabalhos com as moscas lançaram luz sobre doenças como mal de Alzheimer e Zika, ensinaram cientistas sobre tomada de decisão e ritmos circadianos e ajudaram pesquisadores a ganhar seis prêmios Nobel. Mais de um século desenvolvendo moscas de frutas e catalogando os resultados fez das drosófilas o modelo científico mais bem caracterizado que temos.

É um grande papel para uma mosca despretensiosa. “Quando tento dizer às pessoas o que faço, a primeira coisa que geralmente dizem é: ‘Por que você quer manter as moscas de frutas vivas? Eu tento matá-las!’”, disse Sylvester, que cuida do estoque de moscas em Bloomington desde 2014.

Quando algumas moscas pegam carona do supermercado para sua casa, contou ela, seus filhos fazem piada: “Mãe, você trouxe suas colegas de trabalho para casa de novo”.

O Bloomington Drosophila Stock Center é a única instituição desse tipo nos Estados Unidos e a maior do mundo. Atualmente, abriga mais de 77 mil cepas diferentes de moscas de frutas, muitas das quais com alta demanda. Em 2019, o centro enviou 204.672 frascos de moscas para laboratórios em 49 estados e 54 países, disse Annette Parks, uma das cinco principais pesquisadoras do centro.

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É “uma das joias que temos na comunidade”, disse Pamela Geyer, bióloga de células-tronco da Universidade de Iowa, que encomenda moscas do centro há trinta anos.

Outros organismos podem ser congelados em estágios de vida específicos para armazenamento de longo prazo; freezers de laboratório em todo o mundo contêm embriões de camundongos e culturas de E. coli. Mas as moscas de frutas não podem ficar no gelo. Cuidar dessas criaturas significa “virá-las” regularmente, ou seja, transferi-las de um frasco velho para um limpo, abastecido com uma porção de comida. Colocadas em quarentena com outros membros de sua linhagem, as moscas acasalam e põem ovos, que eclodem, criam pupas e se reproduzem, dando continuidade ao ciclo.

“Na nossa coleção temos cepas que vêm sendo continuamente propagadas dessa maneira desde 1909”, passando por diversas gerações e instituições, disse Cale Whitworth, outro pesquisador do centro de estoque. Para manter suas milhões de drosófilas animadas e felizes, o centro emprega 64 estoquistas, além de um cozinheiro de comida para moscas, um assistente de cozinha e cinco lavadores de pratos.

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Margaret Elkins, uma estoquista, empilha bandejas no corredor depois de embalar as moscas da fruta para envio. Foto: Kaiti Sullivan/The New York Times

Se vire

No centro, assim como em todos os outros lugares, os primeiros sinais da pandemia pareciam ameaçadores. “Eu me lembro de brincar com as pessoas: ‘Somos personagens no começo de um romance distópico e ainda não sabemos o que está por vir’”, disse Sylvester.

À medida que o número de casos aumentava, Whitworth preparou uma mochila, com travesseiro e escova de dentes, imaginando o pior. “Eu estava naquela pegada ‘todo mundo doente, último homem na face da Terra’”, disse ele. “Tipo, ‘Quantas moscas consigo virar num período de vinte horas, dormir por quatro horas e continuar virando no dia seguinte?’”.

Mas, em vez disso, quando a Universidade de Indiana fechou no dia 15 de março, o centro continuou aberto.

Kevin Gabbard, o chef de cozinha das moscas, fez uma compra de emergência. Embora comam a mesma coisa todos os dias - uma mistura de produtos à base de milho com fermento - as moscas às vezes ficam exigentes. Sem querer arriscar nada, Gabbard encomendou o equivalente a dois meses de suas marcas preferidas. “Você acha que farinha de milho é tudo igual”, disse ele. “Mas tem farinhas e farinhas”.

Os codiretores desenvolveram um plano mais robusto que, se fosse absolutamente necessário, lhes permitiria “manter a maioria das moscas vivas com apenas oito pessoas”, disse Whitworth. Eles também decidiram suspender todos os embarques, concentrando sua energia só no cuidado com as moscas.

Em 26 de março, as moscas pararam de deixar o prédio - e, quase imediatamente, as mensagens de apoio começaram a chegar. “Vocês são incríveis”, dizia um e-mail. “A comunidade da mosca é forte por causa do trabalho fenomenal que vocês fazem”.

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Mais ou menos na mesma época, os funcionários tiveram de fazer uma escolha. Considerados trabalhadores essenciais, eles foram autorizados a vir ao campus. A universidade lhes garantiu o pagamento integral e horas extras, mesmo que decidissem ficar em casa. (O centro cobre seus custos por meio de uma combinação de bolsas federais do Instituto Nacional de Saúde e de seus próprios ganhos com vendas de moscas).

A grande maioria optou por continuar trabalhando, disse Whitworth, embora o trabalho subitamente tenha ficado bem diferente. O centro costuma ser um local de trabalho muito social, com festas de aniversário e almoços em grupo. O horário normalmente é flexível, o que é um grande atrativo para os funcionários, muitos dos quais são pais, estudantes ou aposentados do trabalho em tempo integral.

Agora as pessoas trabalham de máscara, geralmente em salas separadas. Os turnos de um dos edifícios do centro foram estritamente programados para evitar sobreposições.

Sylvester é especialista em cuidar de moscas cujas mutações exigem TLC extra. Ela também trabalhou em tempo integral durante a paralisação, levada pela preocupação com suas tarefas. “Eu amo as moscas e não quero que morram”, disse ela. “Nunca pensei que amaria tanto as larvas”.

Voltando a bordo

Em meados de maio, o centro voltou a expedir estoques. Parks mostrou outro lote de mensagens, muitas delas agora cheias de alívio. “Parece Natal”, tuitou um laboratório da Universidade de Aarhus, na Dinamarca, com a foto de uma caixa de frascos.

Atrasos nos envios, tanto domésticos quanto internacionais, levaram o centro a sugerir que seus clientes recorressem a transportadoras privadas - as moscas morrem se ficam em trânsito por muito tempo.

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Embora não recebam mais pagamento extra, todos continuam trabalhando. E mesmo que as coisas mudem, Whitworth está pronto. “Nunca desfiz a mochila”, disse ele. “Ainda está no armário”. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

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