Mostra apresenta a engenhosidade da arte feita por presos

O que ocorre atrás das paredes de uma prisão? Privação e crueldade, mas também produção de arte

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Por Holland Cotter
Atualização:

Estamos vivendo em um tempo pós-fato, mas isto não quer dizer que não haja fatos. Aqui estão alguns. Os Estados Unidos têm a maior população prisional da Terra, cerca de 2,4 milhões de pessoas, e uma porcentagem desproporcional delas é composta de negros. Desde os anos 1980, o número de sentenças à prisão perpétua quadruplicou; a idade mínima para a pena de prisão caiu; o uso de confinamento em solitária, às vezes denominada “tortura sem contato”, aumentou.

O resultado é o complexo industrial prisional que conhecemos, um universo punitivo de excluídos do mundo como um todo. O que ocorre atrás daquelas paredes? Privação e crueldade, mas também a produção de arte, como sabemos por causa da Marking Time: Art in the Age of Mass Incarceration, uma perturbadora mostra de 44 artistas inaugurada com a reabertura do MoMA PD1. Uma versão beta (ainda em desenvolvimento, mas aceitável) da mostra ocorreu em 2018 na Aperture Foundation em Manhattan, organizada por Nicole R. Fleetwood, professora de estudos e arte americana na Rutgers University.

Detalhe de uma colagem de Tameca Cole, “All Locked in a Dark Calm,” 2016, de “Marking Time Art in the Age of Mass Encarceration”. Foto: Karsten Moran/The New York Times

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Fleetwood é também curadora convidada da mostra MoMA PS1 e autora de um novo livro de considerável lucidez que dá o título da mostra e define o que ela chama de “estética do cárcere”, uma arte moldada por um espaço radicalmente restrito, um tempo institucional indeterminado e escassez de meios.

Entre os materiais escassos, estão os veículos tradicionais da arte, de maneira que é forçoso encontrar substitutos. Durante um confinamento de 20 anos em uma prisão estadual em Ohio, desde 1991, o artista presidiário Dean Gillispie construiu uma versão fantástica miniaturizada de imagens da sua infância como filho da classe trabalhadora: postos de gasolina em miniatura, cinemas, e lanchonetes de beira de estrada.

Ele as construiu com lixo – palitos de pirulito, películas de maços de cigarros e saquinhos de chá reciclados – presos com alfinetes surrupiados da oficina de costura da prisão. (O seu foi um caso que teve grande repercussão de erro judiciário por estupro, sequestro e assalto antes que o Projeto Innocence de Ohio garantisse a sua libertação; ele foi finalmente absolvido em 2015.) Em 2012, no Instituto Correcional Federal de Fairton, Nova Jersey, Gilberto Rivera, um ex-artista de rua do Brooklyn, também usou os recursos que tinha à mão.

Em reação a um confronto hostil com um guarda, criou uma grande montagem no estilo confuso da pintura de ação com documentos da prisão e o uniforme rasgado de um presidiário, usando cera de assoalho – sua função na prisão era limpar os assoalhos – para ligar o conjunto. Intitulou o resultado “Um Pesadelo Institucional”.

Eu não sei como ele conseguiu esconder a peça, que está na mostra, e depois mandá-la para fora da prisão. Mas as dificuldades não podem ter sido tão grandes quanto as enfrentadas por outro presidiário de Fairton, Jesse Krimes, que teve ainda a tarefa de preservar uma obra muito maior de sua autoria. Krimes acabara de concluir o secundário com um diploma de artes, em 2008, por narcotráfico. (Com poucas exceções, Fleetwood não menciona as razões específicas pelas quais os artistas da mostra foram condenados, supostamente para evitar que sua arte seja interpretada através das lentes da criminalidade).

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Ele rapidamente compreendeu quão psicologicamente danoso pode ser o ambiente da cadeia, e que somente concentrando-se na produção de arte poderia salvar sua sanidade mental. A partir desta percepção, surgiu o que se revelou uma ópera magna prisional: uma paisagem de paraíso e inferno fruto de uma intensa dedicação, composta de fotografias em escala cinematográfica tiradas de jornais, revistas de moda e de arte, com todas as imagens estampadas por transferência – usando gel de cabelo como cola – sobre mais de trinta lençóis de cama da própria cadeia.

“Spiz's Dinette” (1998), em exibição em “Marking Time Art in the Age of Mass Encarceration”. Foto: Karsten Moran/The New York Times

Com a ajuda de companheiros de prisão, em três anos, ele conseguiu mandar os lençóis pelo correio a amigos fora da cadeia. Foi somente depois da última remessa, em 2014, que ele pôde ver os painéis unidos em uma única obra de cinco metros de altura por pouco mais de 12 de largura.

Ele a intitulou “Apokaluptein 16389067”, a combinação do verbo grego “revelar” com o seu número na prisão. Há muitos autorretratos na mostra. Um dos que mais se destacam, de Russell Craig – um artista autodidata que, desde que foi solto da Prisão Estadual Graterford, pintou murais públicos em Filadélfia, sua cidade de origem – tem três metros de altura e ocupa toda uma parede da galeria.

Outro, intitulado “Trancado em uma negra quietude” de Tameca Cole, tem o tamanho padrão de página de impressora. Feita em reação a um acidente de maus tratos na cadeia, é uma colagem do rosto fragmentado de uma mulher saindo ou afundando em um mar de linhas impressas totalmente rabiscadas. E um delicado retrato a lápis de Billy Sell (1976-2013) tão pessoal quanto uma assinatura.

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Quando cumpria a pena de prisão perpétua em uma cadeia da Califórnia por tentativa de homicídio e mantido em solitária, Sell morreu durane uma greve de fome de todas as prisões do estado em protesto contra o confinamento em solitária. As autoridades da prisão definiram a sua morte como suicídio, embora a causa esteja sendo contestada desde então. Sell é um de muitos artistas da mostra envolvidos em ativismo político durante o cumprimento da pena. Outro é Ojure Lutalo, preso em 1975 enquanto assaltava um banco para conseguir recursos destinados a um grupo revolucionário negro.

Ele passou a maior parte dos seus 22 anos em unidades de isolamento onde produziu centenas de colagens cobertas de textos de protesto contra o racismo institucional. Ele define diretamente sua obra “propaganda visual”, embora nem toda a arte política da mostra seja tão abertamente instrumental.

No final, a mostra – que Fleetwood organizou com as curadoras Amy Rosenblum-Martín, Jocelyn Miller e Josephine Graf – complica a definição de crime em si, ampliando-a além dos tribunais na própria sociedade americana. Esta é uma sociedade em que o racismo frequentemente determina a presunção de culpa; em que a pena de prisão – a marginalização e a anulação do ser humano – é preferida à correção das desigualdades que levam à prisão. É uma sociedade em que colocar pessoas em gaiolas é um grande negócio como empresa, com conexões que se estendem para toda parte, inclusive ao mundo da arte.

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Isto ficou claro nos recentes protestos contra administradores de museus – Tom Gores, um investidor em private equity, no Museu de Arte de Los Angeles County, e Larry Fink, presidente e principal executivo do BlackRock no MoMA – por seus investimentos no complexo industrial prisional. A balança da justiça é sensível e oscila. A única maneira de equilibrá-la devidamente é com um olhar firme e apaixonado e um toque prudente. É ali que entra a arte em si. / TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA

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