Terremoto e elevação do nível do mar: desastres trazem lições para lidar com a mudança climática

Os desafios do aquecimento global estão por todos os lados, mas talvez mais nas cidades costeiras que enfrentam duas ameaças: a atividade sísmica e a elevação dos mares

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Por Grace Mitchell Tada
Atualização:

Às 5h46 de 17 de janeiro de 1995, uma câmera de segurança dentro de uma loja de conveniência em Kobe, no Japão, registrou quando o vendedor retirou o dinheiro de troco de uma caixa registradora e passou o dinheiro pelo balcão para o cliente que, com as moedas na mão, uma sacola de plástico na outra, se dirigiu para a porta de saída da loja. Nesse instante, a loja inteira balançou, arrastando tudo dentro dela para a parede atrás da caixa registradora. Os dois homens se ajoelharam, pegos num movimento circular que fez as prateleiras tombarem derrubando caixas e outros artigos pelo chão, atingindo as portas da frente que abriam e fechavam.

No porto, que se estende por várias ilhas artificiais, a terra se moveu como água, com as ondas sísmicas. O cais de concreto foi destruído na Baía de Osaka. As estruturas construídas para manter as águas afastadas não foram suficientes.

O quebra-mar de São Francisco corre o risco de cair se ocorrer um terremoto de magnitude 6,7 ou mais forte. Foto: Jim Wilson/The New York Times

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Os sismógrafos confirmaram rapidamente que o terremoto teve uma magnitude de 6.9 e paralisou a cidade inteira. Pontes e rodovias foram destruídas; água, eletricidade e as linhas de comunicação foram cortadas. Centenas de milhares de pessoas perderam suas casas. Mais de seis mil morreram. Os trabalhos de restauração levaram anos.

Hoje, pesquisadores em todo o mundo consideram Kobe o exemplo de uma cidade moderna onde as estruturas não responderam da maneira que os engenheiros acreditavam que poderiam responder.

A milhares de quilômetros, uma outra metrópole - São Francisco - extraiu desse terremoto paralelos preocupantes: como Kobe, a cidade costeira no norte da Califórnia está no centro de uma área urbana densa e sismicamente ativa construída sobre uma área enorme que foi aterrada, grande parte dela protegida por um quebra-mar vulnerável à elevação das águas causada pela mudança climática.

Sua convergência singular de geologia, construções na cidade e uma modernização da infraestrutura já atrasada aumenta sua vulnerabilidade, mas outras cidades do mundo também se defrontam com os desafios dos riscos sísmicos e a elevação dos mares, de Jacarta, na Indonésia, a Christchurch, Nova Zelândia e qualquer cidade costeira do Oceano Pacífico, do Alasca, na América do Norte, à Patagônia, na América do Sul.

Embora cada local tenha de encontrar soluções adequadas às suas circunstâncias individuais, a premissa é a mesma: o tempo está correndo e ficando mais curto para fortalecer estruturas num mundo que não se preocupou com a mudança climática. Países mais ricos terão mais probabilidade de se sair bem. Mas o desafio para todos é saber como as cidades se protegerão contra o desastre hoje e, ao mesmo tempo, prever os ajustes e uma adaptação no futuro.

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São Francisco é um microcosmo de alguns dos problemas a serem enfrentados em todo o planeta. E embora a cidade esteja avançando no reforço do seu paredão costeiro, a pergunta é: os planos vêm se desenvolvendo rápido o suficiente? E são ambiciosos o bastante?

Em um grande terremoto, os galpões do píer de São Francisco despencariam na água. Foto: Jim Wilson/The New York Times

Pesquisadores do U.S. Geological Survey afirmam que São Francisco tem 72% de chances de um terremoto de magnitude 6.7 ocorrer antes de 2043, e pode acontecer mais cedo, amanhã por exemplo. Nesse nível, os engenheiros do porto de São Francisco calculam que o paredão subaquático da cidade, uma pilha de rochas e concreto que data do século 19 e mantém o litoral a nordeste no lugar, provavelmente desabaria na Baía de São Francisco. Resultado: uma catastrófica falta de proteção de uma cidade com quase 900 mil habitantes. O fato de o muro já estar mergulhado na baía torna o risco futuro muito mais previsível.

No caso de um terremoto com uma magnitude superior a 7.0 e com um epicentro numa distância de 16 quilômetros de São Francisco, o boulevard Embarcadero, por onde num dia normal trafegam 94 mil veículos, deve partir. O local, demarcado pela vista das duas pontes da cidade, liga o distrito financeiro mais importante da Costa Oeste de um lado e a histórica baía que acolhe 15 milhões de visitantes a cada ano, do outro lado.

Cerca de 300 mil turistas chegam ao seu terminal de cruzeiros internacionais todo ano, e em torno de 48 mil pessoas que vivem na região e vêm trabalhar em São Francisco passam pela estação BART diariamente. É um canal central para as concessionárias de serviço público que mantêm a cidade em movimento, desde os departamentos de água às redes de esgoto, elétricas e gasodutos.

Um restaurante no píer em São Francisco. Foto: Jim Wilson/The New York Times

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Durante um dos cenários mais preocupantes de um terremoto, descritos nos documentos do Waterfront Resilience Program, quando o terreno transbordar na baía, os engenheiros temem também o rompimento de dutos e linhas elétricas. O histórico píer despencaria na água e as pilhas de madeira que o apoiam se transformariam em estilhaços. Os pesquisadores preveem que a terra que forma a base dos edifícios à beira-mar - um antigo pântano - convulsionará como água do mesmo modo que ocorreu em Kobe, deslocando tudo e qualquer pessoa em cima dela.

Se o terremoto ocorrer num dia de semana, 40 mil pessoas podem estar à beira-mar, muitas delas presas nas estruturas ou píeres destruídos. Esta mesma área, junto com o Embarcadero, abriga os serviços de emergência contra desastres da cidade, incluindo instalações de evacuação e seu centro de operações de urgência, que ficariam interrompidos num momento de maior necessidade. Mais de US$ 100 bilhões em valor de imóveis e valor econômico estão potencialmente em risco de um colapso da parede de proteção, não incluindo os reparos das concessionárias de serviços públicos. Os engenheiros do porto temem que grande parte dessa barreira de proteção seja irreparável.

O porto de São Francisco (que administra mais de 12 quilômetros da área costeira da cidade, incluindo quase cinco quilômetros respaldados pelo paredão) admitiu que o muro precisa ser modernizado, mas não sabiam como até 2016, quando as autoridades divulgaram um estudo preliminar das vulnerabilidades sísmicas. Ao contrário de outros muros de proteção marítima, o de São Francisco provê o apoio estrutural como também proteção contra inundações. Um estudo subsequente, de 2020, detalhou os seus pontos fracos nas duas frentes.

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São Francisco recebe mais de 15 milhões de visitantes todos os anos na orla da cidade. Foto: Jim Wilson/The New York Times

À medida que a mudança climática provoca a elevação das águas do oceano, o muro de proteção terá cada vez mais de desempenhar seu papel num contexto para o qual não foi destinado. Como um terremoto pode ocorrer a qualquer dia, a prioridade imediata do porto é assegurar a integridade do paredão no caso de um evento daquele tipo. Mas para isso tem de levar em conta também a elevação do nível do mar e as incertezas quanto à rapidez e altura dessa elevação. Decisões para mitigar o risco que forem tomadas agora abrem espaço para o inescrutável.

Patrick King, que dirige o trabalho marítimo na companhia de engenharia Jacobs, que administra o programa de resiliência do porto, falou sobre o desafio premente de projetar uma futura orla marítima. “Esta infraestrutura foi construída para um meio ambiente que não existe mais e que vem mudando rapidamente”, afirmou. E agora “precisamos prever no que esse meio ambiente vai se transformar”.

Até agora, o paredão funcionou na maioria das vezes, mas mais ou menos. No terremoto de 1906, o quebra-mar avançou na Baía, destruindo linhas de bondes, rompendo dutos e destruindo casas. Trechos inteiros de ruas foram deslocados, outras partes afundaram. Na cidade, hoje, um desastre similar seria ainda pior.

Em 1989, o terremoto Loma Prieta, com magnitude 6.9 liquefez partes do solo, especialmente no Marina District, onde irromperam terríveis incêndios. Ao longo do Embarcadero, o muro quebra-mar se rompeu. Algumas das suas juntas de construção abriram.

Apesar dos cenários sombrios, medidas para um futuro mais seguro e mais confiável ao longo da costa começaram a ficar mais visíveis. Mas à frente está o trabalho difícil de equilibrar soluções de design, um futuro desconhecido e pressões orçamentárias - tendo como pano de fundo o tempo que passa muito rápido.

Reforçar o paredão está em primeiro lugar na lista de prioridades do porto. O que significa modernizar os atracadouros e muros, reforçando as estacas, juntas e plataformas e reforçando o enchimento de modo a não liquefazer. E envolve também um trabalho com os serviços médicos de emergência para entender como sua capacidade de atendimento pode ser afetada por um terremoto.

No momento o porto está na “fase criativa”, desenvolvendo seus primeiros planos de adaptação, que serão anunciados no fim do ano. As medidas não se restringirão aos riscos sísmicos. De acordo com o diretor do programa Waterfront Resilience, Brad Benson, “é melhor construir de uma vez para resolver múltiplos problemas”.

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A questão que emerge em qualquer discussão é como pagar esses projetos. O projeto do paredão marítimo é estimado em US$ 5 bilhões e este é somente um dos muitos projetos para solucionar os problemas da região costeira. Mas é um valor que será pago durante 30 anos e as opções de financiamento hoje são melhores do que eram nos últimos tempos.

Os sucessos de parcerias público-privadas em projetos desse tipo são um bom augúrio para o trabalho futuro. O superávit do orçamento do Estado da Califórnia rendeu um valor proposto de US$ 11,8 bilhões para ser investido no enfrentamento dos riscos climáticos, com US$ 211,5 milhões alocados para a resiliência costeira. O governo Biden anunciou recentemente uma expansão do programa Building Resilient Infrastructure and Communities da Federal Emergency Management Agency, que fornece financiamento visando uma redução preventiva dos riscos.

Todas essas opções são avanços positivos nos Estados Unidos, onde financiamento normalmente é alocado depois que os desastres ocorrem: basta lembrar do FEMA, do dinheiro do HUD (departamento de habitação e desenvolvimento urbano dos Estados Unidos) depois dos furacões Katrina e Sandy.

“Planejar com antecipação nos separa de outros lugares”, disse Brian Strong, diretor de planejamento de São Francisco e diretor na área de resiliência. “É muito difícil obter dinheiro antes de o desastre ocorrer, ser proativo quanto a isso”.

As observações de Strong foram feitas poucos meses depois de a cidade sofrer com outras crises simultâneas: a covid-19, a nociva qualidade do ar e o calor extremo. O superávit de orçamento permitindo financiar projetos para o clima ocorreu em parte porque a pandemia não afundou a economia de modo tão grave como o esperado. Segundo Al Muratsuchi, membro da assembleia da Califórnia e presidente do Comitê Legislativo Conjunto de Políticas para a Mudança Climática, agora pode ser “a oportunidade que ocorre só uma vez na vida” de investir na preparação para lutar contra a crise climática.

Depois de guiar sua cidade no enfrentamento dos problemas do ano passado e extrair lições para responder a desastres ao longo do caminho, Strong está entusiasmado, mesmo que discreto, quanto à capacidade de São Francisco de se preparar para o que virá no futuro. “Na verdade, não temos escolha. É impossível resolver tudo em poucos anos. Nossa visão é de longo prazo”, afirmou. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO

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