'Faz bem para a alma': murais gigantescos transformam São Paulo em galeria ao ar livre

Antes tratados como vândalos, grafiteiros e muralistas agora são defendidos e têm sua arte espalhada por toda parte

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Por Ernesto Londoño
Atualização:

Quando Eduardo Kobra começou como artista, marcava os muros de São Paulo na madrugada com corajosas pinturas sobre a vida urbana, sempre trabalhando rapidamente e sempre atento à chegada dos carros da polícia.

Na época, um grafiteiro não ganhava absolutamente nada no Brasil e os riscos eram enormes. Os pedestres o xingavam, a polícia chegou a levá-lo preso três vezes e ele foi intimado dezenas de vezes por destruição do patrimônio público.

Mural de Eduardo Kobra em homenagem às vítimas do Covid-19 em São Paulo. Foto: Victor Moriyama/The New York Times

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“Muitos artistas, naquela época, caíram de prédios e morreram”, conta Kobra. “E havia brigas muito violentas entre os bandos rivais de grafiteiros”.

Aquela época se foi. Muitas coisas mudaram desde que Kobra levou a sua arte para as ruas de São Paulo pela primeira vez, há vinte anos.

Agora, ele é um muralista aclamado internacionalmente, e São Paulo, a maior cidade da América Latina, passou a abraçar - e até mesmo financiar - o trabalho do artista que outrora as autoridades perseguiram e até difamaram.

O resultado é um boom de arte que usa paredes antes decadentes de edifícios como telas enormes. As dezenas de murais pintados recentemente abrandam a paisagem de uma das megalópoles mais caóticas do mundo, espalhando luz, poesia e comentários pontuais no seu horizonte.

Esta forma de arte floresceu durante a pandemia porque os artistas experimentaram consolo e se inspiraram sob os céus abertos ao longo dos meses em que as galerias, museus e espaços de performance fecharam.

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Muitos dos murais pintados no ano passado falaram da crise da saúde, que matou mais de 540 mil pessoas no Brasil, e aprofundou a polarização política.

Kobra pintou um grande mural no exterior de uma igreja mostrando crianças de diferentes religiões usando máscaras. O artista Apolo Torres pintou um mural homenageando o exército de trabalhadores de delivery que mantiveram a cidade de 12 milhões de habitantes alimentada quando medidas de quarentena estavam em vigor.

Enquanto recentes prefeitos de São Paulo se mostravam por vezes hostis e ambivalentes em relação aos artistas de rua, a atual administração tem apoiado totalmente a criação de murais.

No ano passado, a prefeitura lançou uma plataforma on-line chamada Museu de Arte de Rua 360°, que cataloga e mapeia mais de 90 murais que podem ser visualizados virtualmente pelas pessoas do mundo todo ou apreciados pessoalmente em uma visita pela cidade.

Um mural de Mateus Bialon em São Paulo, Brasil. Foto: Victor Moriyama/The New York Times

“A experiência de deparar-se de repente com estas obras de arte torna a vida urbana mais humana, mais colorida e mais democrática”, disse Alê Youssef, o secretário de cultura de São Paulo. “Faz bem pra alma”.

Desde 2017, a prefeitura gastou cerca de US$ 1,6 milhão em projetos de arte de rua.

A arte do grafite deslanchou no Brasil nos anos 1980, quando artistas passaram a inspirar-se nas cenas do hip-hop e punk em Nova York. Trata-se de trabalho dominado pelos homens e alimentado em grande parte por artistas das comunidades marginalizadas.

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Os rabiscos e os desenhos eram uma forma de rebelião, disse Kobra, de pessoas que se sentiam impotentes e invisíveis em uma metrópole efervescente, o motor econômico do Brasil.

"Fui criado em um mundo cheio de drogas, crime e discriminação, onde as pessoas como eu não tinham acesso à cultura", disse Kobra, de 46 anos. “Esta era uma forma de protestar, de existir, de espalhar o meu nome pela cidade”.

A maioria dos artistas que se destacaram na época em que a arte de rua ainda era um cenário underground aprendeu olhando os outros e não em universidades, disse Yara Amaral Gurgel de Barros, de 38 anos, que escreveu a sua tese de mestrado sobre muralismo em São Paulo.

"Eles aprenderam nas ruas, observando os outros enquanto desenhavam, estudando como usavam os pincéis e os rolos de pintura", disse Yara. “A maioria é autodidata, e eles transmitiram a sua habilidade de um para o outro”.

Nos anos 1990, a proliferação da arte de rua somou-se a uma paisagem desordenada e visualmente esmagadora. Durante anos, São Paulo teve poucas regulamentações para a publicidade externa, que deixou grande parte da cidade - inclusive muitos edifícios com pelo menos um dos lado sem janelas - cobertos de cartazes.

Em 2006, os vereadores concluíram que a cidade estava coberta de poluição visual e aprovaram uma lei proibindo os anúncios grandes e vistosos ao ar livre.

À medida que os outdoors foram retirados, os muralistas começaram a considerar a repentina abundância de paredes nuas como um convite para pintar, de início sem autorização e em seguida com a bênção da prefeitura.

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'Trabalhadores de Brumadinho', obra do artista Mundano,em São Paulo. Foto: Victor Moriyama/The New York Times

Aqueles enormes espaços em branco eram fascinantes e sedutores para Mundano, um conhecido muralista e grafiteiro paulistano que disse que as obras de arte expostas nas galerias e nas coleções privadas nunca o atraíram.

“Eu sempre me senti desconfortável com a arte convencional porque destina-se principalmente para as elites”, afirmou Mundano, que usa somente o seu nome artístico. “Nos anos 2000, fui para a rua com a intenção de democratizar a arte”. 

Em 2014, Mundano começou a pintar os carrinhos caindo aos pedaços, sem graça, dos catadores de lixo reciclável transformando-os em exposições coloridas e itinerantes. A iniciativa, que denominou Pimp my carroça, encheu os trabalhadores de orgulho. Posteriormente, o artista criou um aplicativo de celular para que as pessoas possam entrar em contato com catadores de lixo próximos.

“Sempre quis que a minha arte fosse útil”, disse Mundano. “A arte pode fazer frente aos problemas cruciais do Brasil”.

Um desses, segundo o artista, é a tendência de muitos brasileiros de esquecer momentos de traumas - fenômeno que está no centro de sua obra de muralista.

"O Brasil é um país sem memória, em que as pessoas costumam esquecer até da nossa história recente", afirmou Mundano. "Nós precisamos criar monumentos sobre os momentos que nos marcaram como nação."

O mural Trabalhadores de Brumadinho é uma homenagem aos 270 trabalhadores mortos em janeiro de 2019 em um local de mineração em Minas Gerais quando uma barragem estourou.

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Mundano viajou até o local do acidente na cidade de Brumadinho, onde ele recolheu cerca de 250 quilogramas de lama e lodo, que usou para fazer a tinta do mural.

O mural, uma réplica de uma pintura icônica de 1933 de Tarsila do Amaral, uma das masis renomadas pintoras brasileiras, mostra fileiras de trabalhadores, cujos rostos refletem a diversidade do país, com fisionomias cansadas e tristes.

Mundano disse que decidiu fazer a réplica deste quadro como uma maneira de destacar quão pouco isto mudou em quase um século.

“Eles continuam oprimidos pelas indústrias”, afirmou. / TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA

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