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Museus enfrentam dilema ético sobre doações filantrópicas

As instituições, que patinam no quesito autossustentabilidade, dependem de milionários e corporações cujo dinheiro tem, muitas vezes, origem ilícita

Por Holland Cotter
Atualização:

Durante gerações, as pessoas apresentaram a tendência de enxergar os museus de arte como alternativas para o cotidiano grosseiro. Como as bibliotecas, eram espaços de aprendizado; como as igrejas, eram espaços de reflexão. Eram visitados por aqueles que buscavam um toque de beleza e uma aula de “valores eternos", encarnados em relíquias do passado doadas por anjos de inclinação cívica.

É provável que a maioria não soubesse que muitas dessas relíquias são artigos roubados - e a maioria dos museus não revela esse detalhe. O mesmo vale para o fato de alguns anjos doadores serem plutocratas tentando usar a arte para limpar o fedor da sua fortuna. E também para o fato de os valores encarnados em objetos belos serem com frequência abjetos.

Protesto contra o financiamento oferecido pela família Sackler, produtora do OxyContin, no Guggenheim de Nova York. Foto: The New York Times

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Hoje, as pessoas são mais conscientes em relação a esses deslizes éticos, como evidenciado em numerosos protestos recentes contra museus, embora ainda confiem nas instituições culturais, como museus e universidades, acreditando estarem do lado certo. Nos momentos de crise política e confusão moral, as pessoas se voltam a elas para justificar aquilo em que acreditam.

Nas décadas anteriores, os americanos acreditaram que as universidades assumissem posicionamentos condizentes com seus princípios em relação aos males - guerra, racismo - que incendiavam o país. Mas, quando ficou claro que algumas das principais instituições de ensino eram na verdade parte integrante do mecanismo que abastecia o conflito no Vietnã e perpetuava o apartheid global, a fé se perdeu e jamais foi restaurada.

No momento, há uma guerra interna nos Estados Unidos envolvendo o meio ambiente, a pobreza, a diferença, a verdade. E chegou a vez de o museu de arte se tornar o objeto de escrutínio. Desde o início de março, um coletivo de ativistas chamado Decolonize This Place tem realizado protestos semanais no Whitney Museum of American Art, em Nova York. Sua demanda imediata é o afastamento de um membro do conselho do museu, Warren B. Kanders, proprietário de uma empresa (Safariland) que produz insumos militares, incluindo um tipo de gás lacrimogêneo que teria sido usado na fronteira dos EUA com o México.

Outro grupo, Prescription Addiction Intervention Now, realizou ao longo do ano passado eventos que perturbaram o funcionamento do Metropolitan Museum of Art e do Solomon R. Guggenheim Museum, ambos em Nova York. Seu protesto é contra o recebimento de doações de obras de arte e dinheiro de membros da família Sackler, que há muito contribui com os museus, e foi identificada como produtora do viciante opioide OxyContin. Quando a notícia veio à tona, diversos museus, incluindo o Guggenheim, rapidamente cortaram laços com a família (o Met foi mais cauteloso, mas acabou fazendo o mesmo).

Por fim, acervos de museus de arte passaram a ter seus antecedentes verificados do ponto de vista ético depois que, em 2018, o presidente francês, Emmanuel Macron, propôs que objetos saqueados da África durante uma era colonial anterior fossem devolvidos de acordo com a demanda a seus locais de origem - projeto que poderia ser aplicado a uma ampla gama de obras da arte ocidental e não ocidental.

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Em resumo, no intervalo de pouco mais de um ano, os próprios alicerces dos museus - o dinheiro que os sustenta, a arte que os preenche, seus administradores - foram questionados. Recentemente, o American Museum of Natural History, em Nova York, foi criticado por alugar seu espaço para um jantar em homenagem ao presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, declaradamente racista, homofóbico e inimigo do meio ambiente (o evento foi cancelado).

Os museus são caros demais para serem sustentáveis do ponto de vista financeiro. Com isso, precisam depender do dinheiro privado, frequentemente corporativo, e aceitar a possibilidade de parte desse dinheiro ter origens questionáveis. A decisão em relação ao que fazer com o dinheiro recebido dos Sacklers se tornou mais fácil depois que vieram a público evidências de que certos membros da família ligados à produção do remédio OxyContin sabiam de suas propriedades viciantes, mas abafaram a informação.

Quando a notícia se tornou pública, vários museus romperam rapidamente seus laços com a família, entre eles o Guggenheim (mais cauteloso, o Met disse estar “analisando mais a fundo” suas políticas). Enquanto isso, a Fundação Sackler anunciou uma pausa nas doações filantrópicas à arte.

Em comparação, a reação à proposta de Macron de devolver a arte roubada da África foi variada, sem que houvesse um consenso quanto à melhor forma de agir. As instituições se veem diante de um terreno difícil e têm tudo a perder. Não surpreende que muitas relutem em levar a sério uma devolução. Mas, se a justiça for feita, elas terão que aceitá-la. Caso contrário, o colonialismo será mantido.

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A administração do Whitney hesitou diante da possibilidade de excluir Kanders do conselho, ainda que quase 100 funcionários do Whitney e mais da metade dos artista da Bienal de 2019, inaugurada em 17 de maio, tenham assinado petições exigindo sua saída. O diretor do Whitney, Adam Weinberg, enviou aos funcionários uma carta que diz essencialmente, “Sinto muito, precisamos do dinheiro de Kanders".

Mas, se aceitamos uma vaga no conselho de um museu, e revela-se que nossa presença é reprovada pelos funcionários e considerada prejudicial à instituição, não seria nosso dever renunciar? No clima político atual, com uma maré alta de violência racista, étnica e xenofóbica, a neutralidade não é uma alternativa para instituições que têm imperativos éticos no seu DNA.

Precisamos que essas instituições sejam ambientes alternativos, nos quais hierarquias de poder padronizadas sejam dissolvidas e a própria verdade seja compreendida como uma história em eterno andamento. A questão da permanência ou saída de Kanders pode ser menos importante do que o debate e os protestos despertados pela sua presença, o que deve levar a um aprofundamento do debate a respeito da ética institucional, e a novos protestos. Acredito nessa possibilidade. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

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