Museus pelo mundo mapeiam um século da história de refugiados

Deixando sua marca depois de fugir da guerra e da perseguição

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Por Jason Farago
Atualização:

WASHINGTON - “Em primeiro lugar, não gostamos de ser chamados de ‘refugiados’”, escreveu Hannah Arendt em 1943. Na época, ela estava em Nova York. Uma década antes, a filósofa fugiu da Alemanha, seu país natal. Depois de alguns anos em Paris, foi mandada com outros judeus para um campo de concentração. Escapou, chegou a Portugal e, em seguida, aos Estados Unidos.

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Mas, em 1943, ela ainda vivia sem país e, no mordaz ensaio Nós, refugiados, tentou sondar seu lugar em meio a uma enxurrada de inocentes desabrigados. “O inferno não é mais uma fantasia ou crença religiosa, e sim algo tão real quanto as casas, pedras e árvores”, escreveu Arendt. 

Atualmente, as Nações Unidas calculam que haja 25,9 milhões de refugiados em todo o mundo, o maior número já observado desde a 2ª Guerra Mundial. Esse total é o dobro do observado em 2012, e talvez não leve em consideração os imensos deslocamentos de pessoas da Venezuela (estima-se que quatro milhões de pessoas tenham deixado o país).

Cada uma delas tem direito a asilo seguro, de acordo com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, mas poucas o encontram. Essas são as vidas que povoam The Warmth of Other Suns, exposição chocante e constrangedora em cartaz na Phillips Collection, em Washington. O museu é tomado pela obra de 75 artistas. Sua abordagem para a imigração é informada pela renomada Série da Imigração, de Jacob Lawrence, 1941, e as cenas de Lawrence retratando a imigração interna dos negros americanos também são mostradas.

Mas essa exposição se concentra em um tipo específico de imigrante: os refugiados que cruzam fronteiras não em busca de oportunidades, mas temendo por suas vidas. Isso significa que o foco é o Mediterrâneo, epicentro da crise de refugiados dessa década. Uma parte preponderante dos refugiados de hoje, 6,7 milhões, vem da Síria

Imagem do fotojornalista mexicano Guillermo Arias mostra hondurenhos tentando chegar aos EUA em 2018. Foto: Guillermo Arias para Agence France-Presse

Desenhos góticos mostrados aqui da artista Anna Boghiguian mostram sírios rumando para o oeste a partir de Beirute, enquanto o artista chinês Liu Xiaodong preparou um estúdio em Lesbos, pintando os sírios sorridentes e preocupados. Outros, como o fotojornalista mexicano Guillermo Arias, examinam a imigração com destino aos EUA.

Uma sala com quatro obras abstratas de Rothko, cuja família fugiu dos pogroms na Rússia, traz atores interpretando entrevistas com imigrantes mexicanos. O valor de The Warmth of Other Suns jaz nessa mistura de retrato franco dos refugiados com obras de arte mais calmas e abstratas. Elas delineiam uma imagem mais fragmentada da arte do século passado, na qual o refugiado não é um forasteiro, e sim um ator central na nossa cultura global.

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Na Bienal de Veneza deste ano, a crise de refugiados é facilmente visível. Na obra de Christoph Büchel, Barca Nostra, o artista suíço expôs um barco real no qual centenas de imigrantes se afogaram. Arendt escreve que, com a sua geração, a natureza do refugiado sofreu uma mudança. 

“Não cometemos nenhum ato”, escreveu ela em 1943, “e a maioria de nós jamais sonhou em ter opiniões radicais.” O refugiado era um fato da vida - e refugiados judeus como Arendt, Einstein, Freud, Adorno, Claude Lévi-Strauss e Eric Hobsbawn logo reformariam as bases da arte e da sociedade.

“A cultura ocidental moderna é em boa medida a obra de exilados, imigrantes e refugiados”, escreveu o filósofo americano-palestino Edward Said, que se mudou de Jerusalém para o Cairo pouco antes da criação do estado de Israel. Os filmes de Billy Wilder, Fritz Lang, Marlene Dietrich e Milos Forman. Os romances de Thomas Mann, Vladimir Nabokov, Viet Thanh Nguyen e Herta Müller. A música de Freddy Mercury, Gloria Estefan e M.I.A. Tudo isso faz parte da arte dos refugiados.

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The Warmth of Other Suns imagina arte moderna em si como uma espécie de campo de refugiados, onde desespero e inércia se misturam a evocações do lar e da família. São incluídas obras de uma patologia quase insuportável, como um vídeo do artista turco Erkan Ozgen no qual uma criança surda e muda tenta relatar o que viveu sob o Estado Islâmico. 

A forma mais significativa de indiciar o pouco caso de hoje é desenterrar o quanto nós mesmos somos herdeiros de histórias de refugiados. Essa foi a estratégia da obra-prima da crise atual: o filme Transit, do diretor alemão Christian Petzold, que transpõe perfeitamente um romance de 1942 contando a história de refugiados desesperados para fugir da incursão nazista em Marselha para a França dos tempos atuais. Os meios mais simples são usados para dizer: ignorar os desesperados não é perdoável, e certamente não é novidade. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

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