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'Não há lei': medo e incerteza reinam na Nicarágua

Temendo a violência dos embates entre dissidentes e forças do governo, nicaraguenses começam a deixar o país

Por Kirk Semple
Atualização:

MANÁGUA, NICARÁGUA - Há uma eterna fila do lado de fora do principal escritório de emissão de passaportes, frequentemente composta por centenas de pessoas. Ela começa a se formar antes de o sol nascer. A demanda é tão alta que aproveitadores da capital acampam na calçada para vender seus lugares na fila a quem oferecer mais.

Com uma violenta crise política que arruinou a economia e abalou o controle do presidente Daniel Ortega sobre o país, as pessoas estão fugindo da Nicarágua aos montes. "É uma realidade terrível", disse Miltón, 36 anos, que pediu para não revelar o sobrenome por medo de represálias. "O país não se sustenta".

A fila diante do escritório de emissão de passaportes de Manágua se forma logo cedo, todos os dias. Foto: Daniele Volpe para The New York Times

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A Nicarágua explodiu em meados de abril, quando o governo de Ortega anunciou mudanças no regime de aposentadoria, dando início a protestos. Os manifestantes entraram em confronto com forças de segurança e montaram barricadas nas estradas de todo o país, paralisando o comércio. Defensores dos direitos humanos calculam que entre 300 e 450 pessoas tenham morrido, além de milhares de feridos, e a grande maioria dos manifestantes baleados foi alvo da polícia ou de forças paramilitares a serviço das autoridades.

O governo também recorreu à tortura e às detenções arbitrárias para esmagar os dissidentes, de acordo com representantes da Igreja Católica. A Associação de Defesa dos Direitos Humanos na Nicarágua disse que quase 600 pessoas foram sequestradas e há centenas de "desaparecidos".

Diante da repressão do governo, os protestos perderam força, substituídos por ocasionais marchas pacíficas. Mas a crise entrou numa nova fase, marcada pelo temor generalizado em relação ao que virá a seguir. As negociações entre o governo e a oposição chegaram a um impasse no mês passado. O governo segue detendo opositores.

"Estamos num estágio muito difícil", disse Álvaro Leiva, diretor da Associação de Defesa dos Direitos Humanos na Nicarágua. "É a fase da repressão". Centenas de líderes das manifestações estão escondidos ou fugiram do país.

Ortega, que recusou as demandas da oposição que pediam sua renúncia e a convocação de novas eleições, respondeu com entrevistas nas quais desviou da responsabilidade pelo derramamento de sangue e tentou transmitir a imagem de que o país está voltando ao normal.

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Mas até alguns dos aliados mais próximos de Ortega reconhecem que a Nicarágua virou uma bagunça. Em entrevista concedida no final do mês passado, Paul Oquist, secretário de políticas nacionais, reconheceu a sensação de medo e incerteza que dominou a sociedade nicaraguense - de ambos os lados do conflito. Ele se mostrou particularmente preocupado com o estrago sofrido pela economia do país, descrito como "imenso".

Dezenas de milhares de trabalhadores foram dispensados ou colocados em férias compulsórias. Milhares de empresas fecharam. O investimento estrangeiro no país foi praticamente congelado, e há escassez de crédito. A indústria do turismo é palco de demissões generalizadas. Em Granada, as ruas coloniais costumavam viver repletas de visitantes estrangeiros, que vinham ver as igrejas, as charretes e os relaxantes cafés das praças. Mas, numa tarde recente, não se via um único turista por lá.

O colapso da sociedade se torna mais evidente à noite, quando o medo leva os nicaraguenses a ficarem em suas casas. Os negócios começam a fechar no meio da tarde. Ao anoitecer, restaurantes e bares já apagaram as luzes, e entra em vigor um toque de recolher de facto. 

Diante da repressão do governo, as manifestações de rua perderam força, substituídas por ocasionais marchas pacíficas. Foto: Daniele Volpe para The New York Times

"Nós nos sentimos como prisioneiros em nossas casas", disse Xochilt Aguirre, gerente-geral do hotel Plaza Colón, em Granada.

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Numa manhã recente, o pequeno escritório da Associação de Defesa dos Direitos Humanos na Nicarágua estava lotado de pessoas que aguardavam para prestar queixas de ameaça, violência e perseguição. O barbeiro José disse ter recebido ameaças de morte por ter publicado críticas ao governo de Ortega em seus perfis nas redes sociais. Ele fechou seu estabelecimento e fugiu de casa.

José disse que homens usando toucas ninja saquearam sua casa e sua barbearia. "Não há lei na Nicarágua", acrescentou ele. "Não há nada que possa nos defender".

Os partidários de Ortega afirmam que ele foi eleito legitimamente e criticam a oposição por mergulhar o país no caos. "O povo não deixará que ele parta", disse Brenda Sandino, enquanto participava de uma grande manifestação em favor de Ortega realizada em 28 de julho em Manágua. A poucos quarteirões dali, milhares participavam de um protesto contra o presidente.

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"Precisamos retomar o diálogo", disse Oquist, prevendo que o país "cairá na anarquia" se Ortega for deposto.

Para alguns, essa anarquia já começou. Em abril, sem-teto começaram a ocupar terrenos privados, construindo assentamentos rudimentares. Quase 13 mil acres foram ocupados em sete estados, de acordo com a União dos Produtores Rurais da Nicarágua, que representa o setor. Muitos proprietários se viram impotentes diante das invasões.

"Isso ocorre por necessidade, por causa da situação", comentou Francisco, 33 anos, maquinista desempregado que construiu um barraco na periferia da capital.

Apesar da terra recebida de maneira aparentemente gratuita, ele tinha críticas ao governo Ortega. "Nosso objetivo é viver em tranquilidade, em segurança", contou. "Antes, tínhamos segurança. Mas a situação explodiu feito uma bomba. Nossa luta é no dia a dia".

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