Nas versões femininas de filmes clássicos, homens ainda aparecem

Em 'Oito mulheres e um segredo', é um homem quem se torna protagonista no clímax da película; a onda de produções refeitas com mulheres nos papéis principais parece uma forma de Hollywood tentar melhorar sua imagem

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Por Amanda Hess
Atualização:

Voltando ao verão de 2016, quando o remake de “Caça-fantasmas”, desta vez com personagens femininos, chegou aos cinemas, os fãs do original acharam o novo filme um assassinato político.

A substituição dos ídolos da comédia, que haviam visto na infância, por mulheres era uma espécie de crime narrativo, por um complô de magnatas de Hollywood e feministas desprovidas de humor.

As refilmagens de Hollywood com foco feminino exigem que as mulheres revivam histórias de homens - e também consertem suas políticas Foto: Matthieu Bourel para The New York Times

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O remake chamativo deste verão com personagens femininos, “Oito mulheres e um segredo”, canaliza este histrionismo com uma guinada deliciosamente literal. Quando Debbie Ocean (Sandra Bullock), de jardineira laranja, tenta convencer os guardas a soltá-la da prisão com sua lábia - cena que reflete a audiência de liberdade condicional de abertura de Danny Ocean (George Clooney) de "Onze homens e um segredo" de 2001 - ela revela que Danny era seu irmão, e que este morreu.

Mas enquanto Debbie monta seu próprio assalto - o roubo de um colar de diamantes de Cartier no valor de US$ 150 milhões de uma celebridade, no Gala do Met, em Nova York - ela meio que espera o retorno dele. E nós também passamos o filme aguardando o aparecimento dele.

Mesmo quando uma franquia de cinema é reformulada para personagens femininos, ainda gira em torno de homens - as falas que eles escreveram, os personagens que eles criaram, o mundo que eles construíram.

Neste verão foram produzidos três filmes com os gêneros dos personagens principais trocados. Além de “Oito mulheres e um segredo”, temos o filme de Melissa McCarthy, “Alma da festa”, que plagia sua premissa da comédia “De volta às aulas”, de Rodney Dangerfield, de 1986 - a crise da meia idade inspira um pai a seguir o filho na faculdade. Há também “Um salto para a felicidade”, com Anna Faris, mãe solteira, operária (o pai, interpretado por Kurt Russell no original de 1987), que quer se vingar de um playboy depois que cai do seu iate e esquece a própria identidade ( Eugenio Derbez no papel de Goldie Hawn).

E há outros a caminho, como as adaptações femininas de “Senhor das moscas”, “Splash” e “Nosso querido Bob?”.

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A versão feminina do filme permite que Hollywood retome velhos temas lucrativos, com um elenco variado e um toque de boa política. Isto tem favorecido um boom de papeis cômicos para as mulheres, mas isto vem com uma bagagem.

Estes remakes exigem que as mulheres revivam as histórias antes vividas por homens em lugar de apresentarem histórias próprias. Delas, espera-se sutilmente que consertem estes velhos filmes, neutralizando o seu sexismo e infundindo neles o feminismo, transformando-os em boa política. Elas precisam fazer tudo o que os homens fizeram, ao contrário e com ideais.

"Oito mulheres e um segredo" evoca o imperativo corporativo-feminista de mulheres que tomam capital, como uma espécie de iniciativa de pagamento igual para mulheres ladras.

Além disso, dando às mulheres a posição de vantagem do sexo, estes remakes neutralizam os aspectos mais ofensivos dos originais. Quando Russell sequestra uma mulher que sofre de amnésia, Goldie Hawn, e a convence de que ela é sua esposa em “Um salto para a felicidade”, de 1987, ele se diverte gesticulando como se fosse estuprá-la. Mas, no remake, é o playboy interpretado por Derbez quem tenta partir para uma relação sexual com Anna Faris, que não está nada interessada.

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Estes filmes aparentemente servem para corrigir simbolicamente o mau tratamento que Hollywood reserva para as mulheres. Mas a aceitação social muitas vezes se dá em detrimento da história. As cientistas de Caça-fantasmas assediam o seu recepcionista (Chris Hemsworth), que é um gato, mas isto visivelmente força a credulidade. E quando a mãe solteira de Anna Faris, Kate, arrasta o conquistador que recentemente a atacara fisicamente em sua casa para morar com suas três filhas, a escolha parece totalmente maluca.

Embora estas novas versões muitas vezes alardeiem um “elenco totalmente feminino”, mantém evidentemente os homens em um papel principal, o do antagonista. (Por alguma razão, os homens também precisam dirigir todos estes filmes.)

Em “Oito mulheres e um segredo”, o enredo gira em torno de um marco masculino: Claude Becker (Richard Armitage), o astuto negociante de arte que leva Debbie a participar de um plano de fraude de obras de arte (e a um relacionamento) e depois se vira contra ela.

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Embora estes filmes libertem as mulheres de velhas expectativas de Hollywood, eles as fecham em uma nova expectativa: suas protagonistas femininas precisam ser admiráveis. Os personagens de Bill Murray ou Dangerfield não precisaram atender a esta exigência, e eles obtiveram a admiração graças ao seu total empenho em exterminar o inimigo.

Para as mulheres, a exigência muitas vezes se manifesta como um comportamento tipicamente feminino - atuar de maneira excelente, e convencer disso. Em “Alma da festa”, Melissa passa por uma transformação, em “Oito mulheres e um segredo” as mulheres usam vestidos de gala para o Met.

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Mas quando a novidade deixar de existir, estes filmes começarão a ser avaliados não por sua política, mas por seus méritos. Os personagens masculinos de “Onze Homens e um segredo” tiveram de fazer uma coisa que as mulheres de “Oito mulheres e um segredo” não tiveram: estrelar um bom filme. O plano do assalto de Debbie é tão fraco que a única regra que ela estabelece para a ação, que não haja nenhum homem no grupo, é traída no clímax, quando um ator realiza o elemento mais complexo.

Um nota para Hollywood: quando as mulheres se queixaram de que não podem desempenhar os mesmos papéis dos homens, elas não queriam dizer ao pé da letra.

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