O guardião da moral egípcia

O advogado Samir Sabry afirma que entrou na Justiça com mais de 2.700 ações criminais contra cidadãos egípcios

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Por Declan Walsh
Atualização:

CAIRO - Em um canto onde reina a desordem total no seu escritório de advocacia, que é um verdadeiro labirinto, Samir Sabry olhava absorto para a tela do computador, o rosto grave como uma pedra, observando o clipe de um boneco de fala grosseira que fazia piada sobre os egípcios. "Como um par de nádegas em um par de cuecas", zombava o boneco.

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"Eles chamam isso fazer graça?", perguntou Sabry. "É algo extremamente imoral, e muitos egípcios odeiam este tipo de coisas".

Na manhã seguinte, seu escritório despachou uma queixa-crime para um promotor público, acusando os produtores do boneco de "incentivar o deboche". Se forem condenados, eles poderão pegar até cinco anos de prisão.

Sabry, 67, é um dos advogados mais prolíficos de um país em que a lei permite que um cidadão mova acusações contra outro por crimes como imoralidade e "insulto" à nação. Embora caiba a um promotor do governo decidir se esse tipo de casos deve ser levado adiante, e muitos são menosprezados por serem considerados frívolos, eles já cercearam a liberdade de expressão, tolheram a liberdade de expressão artística e até mesmo influenciaram a política.

Vigilante incansável, que brande a lei como se fosse um cassetete para fazer respeitar seu nacionalismo egípcio irascível, e muitas vezes paranoico, Sabry se gaba de ter entrado com mais de 2.700 ações de interesse público nos últimos 40 anos. Suas armas legais atingiram atores, clérigos, políticos e até mesmo uma dançarina do ventre, e poderão ter um papel decisivo nas próximas eleições presidenciais.

Muitas ações, no entanto, fracassam. Este foi o seu terceiro processo contra o programa de bonecos. Mas quando Sabry é bem-sucedido, as consequências podem ser profundas.

O advogado egípcio Samir Sabry, que tem uma série de processos contra críticos do presidente do Egito, Abdel Fattah el-Sis, e cidadãos que insultam o país. Foto: Declan Walsh|The New York Times

Um clérigo evangélico que prega na televisão, conhecido como Sheikh Mizo, irritou Sabry com seus ensinamentos e acabou condenado a cinco anos de prisão em fevereiro. O escritor Ahmed Naji ficou preso nove meses, em 2016, com base em uma queixa apoiada por Sabry.

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Em novembro, Sabry contribuiu para mandar para a prisão Sherine, uma cantora popular egípcia, por ter feito uma piada ferina a respeito da qualidade da água notoriamente suja do Nilo.

"A arte egípcia se encontra em seu pior estado neste momento", ele esbravejava. "Essa gente usa a nudez, o palavreado grosseiro, as drogas e o crime, e mostra nossas mulheres egípcias como prostitutas. Precisamos acabar com isso".

Agora, o destino de um dos poucos políticos da oposição no país está por um fio, sempre por causa de Sabry. Khaled Ali é, provavelmente, o único verdadeiro adversário do Presidente Abdel Fattah el-Sisi nas eleições marcadas para este mês. Poucos acreditam que ele possa ganhar, mas suas chances de vitória são ainda mais reduzidas porque, no ano passado, ele foi condenado por causa das acusações movidas por Sabry, que sustenta que ele teria feito um gesto obsceno fora da sala de um tribunal no Cairo. Se o recurso impetrado por Ali fracassar, automaticamente ele será impedido de concorrer ao cargo.

Sabry se deleita com seu papel de promotor da moral. "As pessoas me temem", afirmou. Em 2015, ele barrou uma dançarina do ventre, Sama al-Masry, que foi impedida de concorrer a uma cadeira no Parlamento por causa de sua profissão. "É totalmente inadequada", afirmou. E ele tentou ainda fechar a redação do Cairo do jornal britânico "The Guardian", que acusou de espalhar "notícias falsas".

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No entanto, seu respeito pela verdade é questionável. Sabry informara que em 2000 recebeu o título de doutor em direito comercial na Universidade de Boston. Mas a Universidade de Boston não tem qualquer registro de Sabry, e não dá cursos de doutorado em direito comercial.

Sabry insistiu que financia pessoalmente seus processos, sem ajuda do governo.

Mesmo quando as suas ações fracassam, elas produzem efeitos assustadores. O jornalista Khaled Dawoud contou que, embora tenha escapado ileso de uma ação movida por Sabry, a ameaçade novas acusações está sempre presentes, "como uma espada pendurada sobre a minha cabeça".

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Nour Youssef contribuiu para a reportagem.

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