Através das múmias, o elo entre tatuadores e seus ancestrais

Enquanto os cientistas descobrem novas tatuagens em restos preservados de culturas indígenas, artistas de hoje recorrem a eles para reviver as tradições culturais

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Por Krista Langlois
Atualização:

Nos anos 1970, alguns caçadores descobriram oito corpos de 500 anos preservados pelo clima ártico nas proximidades de Qilakitsoq, um assentamento inuit abandonado no noroeste da Groenlândia. Mais tarde, ao fotografar as múmias com filmes infravermelhos, os cientistas fizeram uma descoberta intrigante. Cinco das seis mulheres tinham delicadas linhas, pontos e arcos tatuados em seus rostos.

Por milhares de anos, as tatuagens representaram mais do que meras decorações corporais para os inuit e outras culturas indígenas. Elas eram símbolos de pertencimento, significavam rituais da chegada do amadurecimento, canalizavam crenças espirituais ou conferiam poderes que podiam ser evocados ao dar à luz ou na caça. Entretanto, a partir do século 17, missionários e colonos preocupados em “civilizar” os povos indígenas puseram um ponto final nas tatuagens em quase todas as comunidades, exceto as mais remotas.

Tatuadora Maya Jacobsen tem ascendência inuit e desconhecia as tatuagens que eram comuns em seu povo. Foto: Betina Garcia/The New York Times

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A prática desapareceu de maneira tão completa na Groenlândia que Maya Sialuk Jacobsen, que passou a infância lá, trabalhou por dez anos como tatuadora no estilo ocidental antes de se dar conta de que os seus ancestrais inuit também haviam sido tatuadores, embora de uma natureza distinta.

Hoje, Sialuk Jacobsen usa documentos históricos, artefatos e as múmias qilakitsok - várias das quais atualmente estão expostas no Museu Nacional da Groenlândia – para pesquisar desenhos tradicionais de tatuagens inuit. Então, ela reproduz com pequenos furos e pontos os desenhos das faces e corpos de mulheres inuit, e ocasionalmente homens, ajudando-os a se relacionarem com os ancestrais e a recuperar uma parte de sua cultura.

“Sinto grande orgulho ao tatuar uma mulher”, ela disse, “Quando ela se encontrar com suas ancestrais femininas no outro mundo, será como olhar em um espelho”.

Sem a marca física deixada pelas tatuagens antigas, os modernos praticantes da arte como Sialuk Jacobsen disporiam de poucas provas para orientar o seu trabalho. Felizmente, à medida que aumenta o número de tatuadores indígenas que estão ressuscitando tradições perdidas, um pequeno grupo de arqueólogos está percorrendo o caminho das tatuagens ao longo do tempo e do espaço, descobrindo novos exemplo do seu papel nas sociedades históricas e pré-históricas. Juntos, cientistas e artistas estão mostrando que a necessidade de pintar o nosso corpo está profundamente arraigada na psique humana, em todo o globo e falando através dos séculos.

Ponham a agulha no registro

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Até pouco tempo atrás, os arqueólogos ocidentais ignoraram em grande parte a arte da tatuagem. E por causa do desinteresse destes cientistas, instrumentos feitos para furar, ou dar pontos na pele humana eram catalogados como agulhas de costura ou furadores, e as múmias tatuadas “eram vistas mais como objetos de fascinação do que espécimes científicos”, disse Aaron Deter-Wolf, arqueólogo pré-histórico da Tennessee Division of Archaeology e um dos principais pesquisadores da arqueologia da tatuagem.

Mesmo quando o corpo de Ötzi, o Homem do Gelo de 5.300 anos, foi recuperado nos Alpes italianos em 1991, carregando tatuagens visíveis, alguns artigos de jornais da época sugeriram que as marcas eram evidências de que Ötzi era provavelmente um criminoso”, disse Deter-Wolf. “Era um enorme preconceito".

Mas à medida que as tatuagens foram se tornando mais comuns na cultura ocidental, Deter-Wolf e outros cientistas começaram a examinar as tatuagens e os artefatos preservados para estudar a maneira como o povo antigo vivia e em que acreditavam.

Uma investigação de 2019 sobre as 61 tatuagens de Ötzi, por exemplo, pinta um quadro de vida na Europa da Era do Cobre. Os pontos e os traços na pele da múmia correspondem a pontos comuns da acupuntura, sugerindo que as pessoas tinham uma compreensão sofisticada do corpo humano e podiam usar as tatuagens para aliviar os problemas físicos como as dores nas articualações.

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No Egito, Anne Austin, uma arqueóloga da Universidade de Missouri em St, Louis, descobriu dezenas de tatuagens em múmias femininas, hieróglifos sugerindo que as tatuagens estavam associadas à adoração de deusas e a curas. Esta interpretação contesta as teorias de estudiosos homens do século 20 de que as tatuagens femininas eram simplesmente decorações eróticas ou eram reservadas às prostitutas.

O estudo científico das múmias tatuadas inspira também profissionais como Elle Festin, um tatuador de herança filipina que vive na Califórnia. Como cofundador da Mark of the Four Waves, uma comunidade global de quase 500 membros da diáspora filipina unida pela tatuagem, Festin passou mais de 20 anos estudando as tatuagens tribais filipinas e usando-as para ajudar os que vivem fora das Filipinas a se reconectarem com a sua terra natal. Uma das suas fontes é o povo das “múmias de fogo” – das tribos Ibaloi e Kankanaey cujos corpos profusamente tatuados, há séculos, eram preservados por fogo lento.

Entretanto, embora as múmias ofereçam a prova mais conclusiva de como e onde o povo antigo pintava o seu corpo, eram relativamente raras nos registros arqueológicos. Mais comuns – e, portanto, mais úteis para os cientistas que seguem as pegadas da tatuagem – são artefatos como as agulhas feitas de ossos, conchas, espinhos de cactos ou outros materiais.

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Para mostrar que tais instrumentos eram usados para esta finalidade, e não para costurar couro ou vestimentas, arqueólogos como Deter-Wolf fazem réplicas dos instrumentos usando-os para tatuar pele de porco ou os seus próprios corpos, depois examinam as réplicas com microscópios de grande potência. Se os padrões de desgaste feitos furando repetidamente a pele coincidem com os dos instrumentos originais, os arqueólogos podem concluir que os artefatos originais eram usados realmente para tatuar.

Graças a estes experimentos cuidadosos, Deter-Wolf e seus colegas estão recuando cada vez mais na linha do tempo da tatuagem na América do Norte. Em 2019, Deter-Wolf foi o autor de um estudo que mostrava que os ancestrais do moderno povo puebloan estavam tatuando com espinhos de cactos há cerca de dois mil anos no atual Sudoeste americano. Este ano, ele publicou uma descoberta que mostra que as pessoas estavam tatuando com agulhas feitas com ossos de peru onde é hoje o Tennessee, há cerca de 3.500 anos.

Antiga ferramenta usada para tatuar povos originários nos Estados Unidos. Foto: Robert Hubner/Washington State University via The New York Times)

Dion Kaszas, profissional e estudioso de tatuagens Nlaka'pamux na Nova Escócia, está aprendendo como criar as próprias agulhas de osso para tatuagem com Deter-Wolf e Keone Nunes, um tatuador havaiano. O seu objetivo, afirmou, é “voltar para aquela tecnologia ancestral; sentir o que os nossos ancestrais sentiam”. Como restam poucos exemplares de tatuagens Nlaka’ pamux, Kaszas usa desenhos de cestos, cerâmicas utilitárias, vestimentas e arte em pedra. A pesquisa de outras culturas mostra que os desenhos das tatuagens frequentemente imitam os padrões de outros artefatos.

Para Kaszas e outros, a tatuagem não é apenas uma maneira de reviver a linguagem indígena, praticamente silenciada pelo colonialismo. Ela também tem o poder de sanar feridas do passado e fortalecer as comunidades indígenas para o futuro.

"O trabalho realizado pelas nossas tatuagens para nos curar é de um tipo diferente do trabalho que os nossos ancestrais usavam", disse Kaszas. "É uma forma de medicina, para as pessoas olharem para baixo para o próprio braço e compreender que estão ligadas a uma família, a uma comunidade, com a terra".

O pintar a pele saindo do obscurantismo

Embora pessoas de numerosas culturas venham reivindicando a sua herança em matéria de tatuagens nas duas últimas décadas, há muitas outras cujas tatuagens foram inteiramente obscurecidas pela colonização e assimilação. Mas enquanto os cientistas dedicam mais atenção à tatuagem, a sua obra poderá trazer à luz mais tradições perdidas.

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Deter-Wolf espera que os arqueólogos de outras partes do mundo comecem a identificar artefatos deste tipo usando a metodologia na qual ele e outros norte-americanos foram os pioneiros, levando a sua marca cada vez mais longe. Ele supervisiona também um banco de dados on-line como fonte das múmias tatuadas, que deverá corrigir a desinformação popular e ilustrar a difusão geográfica de tais espécimes. A lista inclui múmias de 70 sítios arqueológicos em 15 países – incluindo Sudão, Peru, Egito, Rússia e China – mas Deter-Wolf espera que ela cresça à medida que as imagens com filmes infravermelhos e outras tecnologias descubram novos desenhos na pele das múmias atuais./ TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA

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