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Os rituais de resistência de Grada Kilomba

A artista e psicanalista portuguesa examina o trauma pós-colonial em sua estreia americana no Brooklyn. Os desafios são universais, ela diz

Por Siddhartha Mitter
Atualização:

Grada Kilomba é discreta quando se trata de descrever seu antigo trabalho aconselhando vítimas de guerra. “Foi há muito tempo”, a artista e escritora portuguesa, que se formou em psicologia clínica e psicanálise, me disse em uma visita recente a Nova York.

Em um hospital em Lisboa, Portugal, e depois em Berlim, para onde se mudou no meio da década de 2000, Kilomba conheceu refugiados de vários países vivendo traumas recentes. “As pessoas chegavam diretamente de situações de guerra,” ela disse. Ela trabalhou especialmente com mulheres e crianças.

A multi-artista portuguesa Grada Kilomba apresenta sua primeira exposição nos Estados Unidos. Foto: Jasmine Clarke/The New York Times

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O que ficou com ela foram as histórias - e como eram contadas. “Acima de tudo, ficava fascinada pelas histórias que escutava, e pelas imagens que apareciam para lidar com elas, encená-las,” ela disse. “E é isso que também aparece em meu trabalho.”

Kilomba, 53, é uma notável artista visual cujo trabalho borra as linhas disciplinares, envolvendo arte e ritual; filme, escultura e performance; mitologia grega; estudos negros e feminismo. “Não quero me aprisionar em um formato,” ela disse. “Cada história quer ser contada de uma forma.”

Seu trabalho foi exibido na Bienal de São Paulo em 2016, na Documenta em 2017 e na Bienal de Berlim em 2018. E agora ela tem grandes projetos nos dois lados do Atlântico: sua primeira instalação pública em grande escala, em Lisboa, e sua primeira exposição americana, na Amant Foundation em Nova York, até 30 de outubro.

A contação de histórias, como imperativo e método de cura, é o fio que percorre sua arte e a conecta com sua antiga prática clínica; seus anos ensinando psicanálise e estudos pós-coloniais; sua escrita, notadamente Memórias da Plantação: episódios de racismo cotidiano (2008) baseada em entrevistas com mulheres negras europeias; e sua jornada pessoal para entender suas raízes e subjetividade.

“A prática de Grada como artista surgiu completamente formada, alimentada por outras práticas,” disse Omar Berrada, um escritor e curador, que apresentou suas palestras em Marrakesh, no Marrocos, e na Cooper Union, em Nova York. “Ela veio para o mundo da arte contemporânea com um mundo.”

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Kilomba é uma figura distinta, com um estilo característico de trancinhas grossas que se estendem em longas tranças e fala ao mesmo tempo com suavidade e precisão. Ela me ofereceu um passeio por sua exposição na Amant, um espaço tranquilo que abriu este ano, acompanhada por Ruth Estévez, sua diretora artística, que foi curadora da mostra.

Um dos trabalhos, The Desire Project é um texto projetado em três paredes de uma sala escura na qual Kilomba expressa como a escrita promove a libertação: “Eu escrevo, quase como uma obrigação, para me encontrar... Sou a autoridade de minha própria história.” Na entrada da sala há um templo para a escrava Anastácia, um ícone do folclore brasileiro apresentado como uma mulher escravizada forçada a usar uma máscara de ferro que a impede de falar. Essa passagem - da objetificação e silêncio forçado ao agenciamento completo - é um impulso central no trabalho de Kilomba, observou Estévez. “Ao se tornar o assunto, ela se torna livre para escrever e criar da maneira que ela precisa.”

'Table of Goods' é uma installation de 2017 feita de terra rodeada por velas e cravejada com açúcar, café e chocolate. Foto: Jasmine Clarke/The New York Times

Uma instalação, Table of Goods, consiste de um pequeno outeiro de terra, cercado por velas e cravejado de açúcar, café e chocolate. A busca por esses luxos, Kilomba observou, trouxe uma catástrofe: plantações, monocultura, escravidão. “Os prazeres do Ocidente e os horrores do resto”, ela disse. “Eu queria materializar isso em uma obra.”

O ponto alto é A World of Illusions, três filmes performáticos exibidos em um triângulo, nos quais Kilomba conta os mitos de Narciso, Édipo e Antígona, a partir de reinterpretações pontuais. Em cada um, os atores interpretam a história silenciosamente contra um fundo branco, com interlúdios musicais, enquanto Kilomba, em uma tela menor, narra - à maneira, ela disse, de um griô da África Ocidental.

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Narciso, ela propõe, pode nos dizer algo sobre a autoestima dos brancos. Édipo fala sobre o papel da violência cíclica na manutenção do estado. E Antígona - na encenação de Kilomba, as mulheres desempenham todos os papéis - transmite a necessidade de recordar. “Essas mulheres estão recontando o passado”, ela disse, “mas produzindo a memória para estar no presente e projetar o futuro”.

O trabalho de Kilomba mostra como o trauma e o apagamento são feridas que minam a sociedade.

Quando ela nasceu, em 1968, Portugal estava em guerra contra os movimentos de libertação em Angola, Moçambique, Guiné-Bissau e Cabo Verde, retirando-se apenas após um golpe em 1974 em Lisboa que deu início à Revolução dos Cravos e, um ano depois, à independência das antigas colônias. Mas para as famílias africanas já morando em Portugal, como a dela, as leis ainda obrigavam o uso de nomes padrão portugueses ao invés de africanos.

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Kilomba é um nome de família recuperado que ela aprendeu com sua avó; não é o nome que está em seu passaporte. Na sua primeira viagem à África em 1999, para as ilhas de São Tomé e Príncipe, visitou locais de plantações, procurando vestígios documentais dos seus antepassados.

Criada nas periferias de imigrantes em Lisboa, Kilomba encontrou na psicologia e na psicanálise tanto o início de sua carreira como métodos de autocompreensão. Mas ela achou Portugal limitante. “Eu queria fazer muitas coisas, e todas eram proibidas,” ela disse. “Eu era a única aluna negra no departamento de minha universidade. Você está em constante isolamento.”

Ela ganhou uma bolsa para terminar o doutorado em Berlim e lá ficou; a cidade tem sido seu lar desde 2008. Ela a atraiu, ela disse, por seu papel como um local do pensamento negro na Europa, desde a época de W.E.B. Du Bois em 1892-94 até Audre Lorde quase um século depois.

Em Lisboa, neste outono, Kilomba instalou 140 blocos de madeira queimada no exterior do Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia. Eles formam o padrão associado a imagens de porões de navios negreiros e suas cargas. O local à beira-mar é altamente carregado: Nas proximidades está um enorme Monumento aos Descobridores que construíram o império português, seus navios muitas vezes partindo dessas mesmas docas.

Mais do que um contra-monumento, o O Barco de Kilomba é um ato de cura. O público pode passear por entre os blocos, alguns dos quais com versos de poesia em línguas europeias e africanas. Os performers que se juntaram a Kilomba na dança e na música da instalação são não-profissionais da comunidade negra de Lisboa. /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

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