Pessoas desempregadas ajudam no combate ao vírus em empregos temporários

Alguns trabalhadores em setores devastados na Grã-Bretanha encontram consolo usando suas competências e administrando testes de coronavirus, rastreando contatos e trabalhando em serviços de limpeza em hospitais

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Por Geneva Abdul
Atualização:

LONDRES - Georgia Paget era diretora de palco da peça Hamilton. David Lawrence era regente de corais e orquestras em toda a Grã-Bretanha. Katy Oakden, veterinária, era gerente em uma clínica bastante concorrida.

O emprego dessas pessoas, como o de milhões de outras – como o dos cozinheiros em restaurantes, de camareiras de hotéis, pilotos de avião, livreiros, e muitos outros, de repente desapareceu quando a pandemia se alastrou pelo país no ano passado.

Georgia Paget, gerente de palco desempregada do musical"Hamilton", que conseguiu um emprego ligando para pessoas com teste positivo para coronavírus. Foto: Tom Jamieson/The New York Times

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Agora elas fazem parte de um pequeno exército de milhares de indivíduos que assumiram uma função de combate do vírus, contratados pelo Serviço Nacional de Saúde britânico e por empresas privadas que auxiliam o governo para serviços temporários como limpeza em hospitais, divulgação das regras de isolamento e administração de testes de detecção do coronavírus.

O Serviço Nacional de Saúde é reverenciado pela sociedade britânica por fornecer um atendimento médico de vanguarda durante a pandemia, mas o uso pelo governo de empresas terceirizadas sofreu críticas por má gestão. Depois do primeiro lockdown no país, foi firmado um contrato no valor de US$ 136 milhões para recrutar pessoas para realizarem o rastreamento de contatos, mas sem a devida licitação. Em agosto milhares de empregos na área foram anulados depois de as pessoas se queixarem de não terem recebido nenhum telefonema.

Mas os reveses e as medidas confusas do governo para sufocar o vírus não desencorajaram os trabalhadores de assumirem funções no combate à epidemia.

Para esses trabalhadores temporários o salário é pouco mais do que o mínimo, e com frequência é muito menos do que recebiam no seu emprego passado. Muitos esperam retornar às suas funções anteriores quando a crise passar, mas afirmam que pelo menos encontraram algum consolo num trabalho ao qual não estavam acostumados, às vezes usando suas competências profissionais para novos fins.

O trabalho de Georgia Paget é ligar para as pessoas que testaram positivo para o coronavírus, dentro do sistema de rastreamento de contatos. Ela telefona para se certificar de que elas sabem que devem ficar isolados durante 10 dias e oferece informações sobre o apoio colocado à sua disposição.

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Georgia realiza cerca de 80 telefonemas por dia a partir do seu computador, em Biggleswade, ao norte de Londres. Ela não conhece as pessoas para as quais telefona, exceto o nome e o fato de que testaram positivo.

Alguns ficam felizes em ouvi-la. Mas não é um emprego ingrato. Em dezembro, pouco antes do Natal, ela telefonou para um homem que havia testado positivo e durante a conversa ele contou que havia perdido sua mulher para a Covid-19 um dia antes.

Georgia, que começou esse trabalho em outubro quando teve início a segunda onda, disse ter recebido um bom treinamento e se acostumou com a situação emocional das pessoas do outro lado da linha: desde pessoas enraivecidas que não acreditam na pandemia àquelas que se sentem muito sós. No caso do homem que perdeu a esposa, ela conversou com ele, transmitindo as informações que precisava dar e, ao mesmo tempo, permitindo que ele desabafasse.

“Fico feliz por termos mantido uma conversa, pois foi bom para ele ter alguém com quem falar. E isto me faz pensar que meu trabalho nesse dia teve algum valor”.

Ela imagina que sua experiência no teatro em West End, - especialmente a capacidade de controlar o estresse e comunicar-se com outras pessoas sob pressão – a tem ajudado no contato com uma variedade de pessoas com quem fala ao telefone diariamente.

É um emprego que a ajuda a pagar suas contas. Mas, disse ela, “é um trabalho que posso fazer para ajudar na pandemia, dizer que tenho feito a minha parte, o que é mais gratificante do que um outro trabalho ou não fazer absolutamente nada”.

David Lawrence e Katy Oakden em um centro de testes fora de Cambridge, na Inglaterra. Foto: Tom Jamieson / The New York Times

Trabalhando por um “bem maior”

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David Lawrence, 55 anos, no início, teve dificuldade para conseguir que as pessoas abrissem a boca o necessário para ele enfiar adequadamente o bastão em sua garganta. Este é o seu trabalho agora, três vezes por semana, administrando testes do coronavírus em Cambridge e Peterborough.

Mas há anos ele é regente de corais, e assim apelou a alguns amigos cantores de ópera que são experientes em abrir bem a boca. E eles o aconselharam: dizer para a pessoa pronunciar a palavra “Car” (carro) ou para ela imaginar estar dando uma mordida numa maçã.

Essas sugestões agora estão pregadas na parede do seu cubículo, onde trabalha ao lado de outros colegas com a mesma função e que outrora também desempenhavam outras funções em muitos setores, incluindo pilotos e tripulantes de cabine.

Antes de março de 2020, os dias de David Lawrence eram repletos de música, trabalhando com orquestras, coros sinfônicos por todo o país. Ele agora administra testes para preencher o tempo, ganhar algum dinheiro e se conectar com outras pessoas.

“Estou gostando disto, muito mais do que esperava”, disse ele.

O vírus continua a se propagar na Grã-Bretanha, acelerado por uma nova cepa especialmente contagiosa. O país recentemente superou a marca triste de 100.000 mortes. Ajudar de algum modo a conter o contágio é “um trabalho muito importante a se fazer no momento”, disse ele.

“No futuro vou relembrar este período – não posso esperar por isso – e dizer que fiz alguma coisa, fiz alguma coisa útil e vou me sentir muito orgulhoso disso”, afirmou.

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David Lawrence, um regente de música e coral que agora trabalha como testador de coronavírus. Foto: Tom Jamieson / The New York Times

Depois de seis anos trabalhando como parteira veterinária, Katy Oakden assumiu um emprego de gerente num hospital veterinário para adquirir uma experiência administrativa. Mas essa função lhe trouxe muito estresse e começou a ter um impacto negativo sobre ela, que acabou perdendo a confiança na sua capacidade.

“Esqueci quem eu era, quase perdi minha identidade”, disse. Depois de se licenciar, ela reconquistou a confiança trabalhando junto com outras pessoas administrando testes de coronavírus. Ela se sentiu valorizada e acolhida.

“Encontrei pessoas maravilhosas de todas as condições sociais e é maravilhoso fazer parte de um grupo que realmente sente que está fazendo alguma coisa por um bem maior”.

O afastamento da sua posição como gerente de escritório permitiu a ela se acalmar e refletir.

“Em meio a todo este caos e incerteza você ainda encontra amizades com pessoas que, do contrário, nunca teria conseguido. Numa completa escuridão, ainda existe alguma luz e esperança”. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO

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