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Parasita que afligia humanos agora infecta animais

Quase erradicados entre os homens, a descoberta de vermes-da-guiné em cães ameaça desfazer 32 anos de trabalho

Por Donald McNeil Jr.
Atualização:

KAKALE MASSA, CHADE - Martoussia, a celebridade do momento neste remoto vilarejo de pescadores, tem a respiração pesada sob o toldo onde ele está acorrentado. Ainda assim, ele permanece calmo enquanto a multidão se aproxima.

Crianças têm o olhar fixo, enquanto voluntários com luvas brancas retiram um verme-da-guiné de 32 centímetros da perna do cachorro e cientistas americanos questionam seu dono, um pescador, a respeito de quantos vermes Martoussia já teve.

Lauress Dossou, do Centro Carter (o segundo da esquerda para a direita), retira um verme-da-guiné de uma cadela. Foto: Jane Hahn para The New York Times

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O chefe do vilarejo, Moussa Kaye, de 87 anos, é indagado a respeito da última vez que um aldeão teve um verme. “Foi há mais de 40 anos”, diz ele.

Neste árido país centro-africano, a luta global para eliminar um terrível parasita que infesta humanos se deparou com um sério entrave: os cães. Eles começaram a ser infectados pelos verme-da-guiné, e ninguém sabe como.

Se a resposta não for encontrada logo ou se os vermes começarem a se espalhar para outras espécies - alguns já foram encontrados em gatos e babuínos -, um trabalho de 32 anos para acabar com esse flagelo pode desmoronar, afirmou Mark L. Eberhard, parasitologista dos Centros para Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos.

Quando um patógeno foge do controle em uma população animal, a chance de que ela seja exterminado se torna muito pequena. “Uma reserva animal é o beijo da morte para os esforços de erradicação”, afirmou Eberhard.

Nos anos 30, a campanha para erradicar a febre amarela se encerrou quando os cientistas se deram conta de que macacos carregavam o vírus.

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Em 1986, quando o Centro Carter, a entidade filantrópica global de saúde fundada pelo ex-presidente Jimmy Carter, lançou a campanha de erradicação dos vermes, estimava-se que 3,5 milhões de pessoas em 21 países eram afetadas. No ano passado, somente 30 ocorrências em humanos foram registradas: metade no Chade e metade na Etiópia.

No ano passado, porém, mais de 800 cães no Chade foram infectados pelos vermes.

Os cachorros não são capazes de infectar as pessoas, mas eles podem levar os vermes aos reservatórios de água usados pela população para beber, e esta é a maneira pela qual humanos normalmente são infectados.

Bruno Kagbe e Raul Ngartubdoal demonstram como eles caçam sapos em um lago de Kagale Mberi, no Chade. Foto: Jane Hahn para The New York Times

“Por sorte, os cães não causaram um grande surto entre humanos ainda, mas este é meu pesadelo”, afirmou Ernesto Ruiz-Tiben, que chefia a campanha do Centro Carter.

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Para evitar isso, o Chade está pagando aldeões para deixar os cães amarrados até que os vermes aflorem em sua pele e possam ser retirados. A recompensa é de US$ 20 em dinheiro.

Os humanos com vermes são recompensados com US$ 100. Para gerar publicidade, o dinheiro é entregue em cerimônias organizadas nos mercados semanais à beira de estradas. Trabalhando um ano, as pessoas daqui não conseguiriam tais quantias.

Os vermes são sinônimos de dores agudas. O nome formal da doença é dracunculiasis: “aflição causada por pequenos dragões”. Alguns estudiosos pensam que os vermes-da-guiné eram as furiosas serpentes que, na Bíblia, atacaram os israelitas no deserto.

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Depois de serem ingeridas, as larvas se alojam em regiões que vão do intestino até logo abaixo da pele, onde se acasalam e crescem. Finalmente, a fêmea expele ácido por sua cabeça, criando uma dolorosa bolha, normalmente na perna ou no pé, mas às vezes também nos olhos ou nos genitais. Quando a bolha explode, a fêmea emerge: como um útero de 90 centímetros.

Em razão de o verme ter de ser retirado com a ajuda de uma vareta, a uma taxa de 2,5 centímetros por dia, alguns dizem que ele inspirou o Bastão de Esculápio, o símbolo da medicina: uma cobra que envolve um bastão.

A agonia leva a vítima inevitavelmente a aliviar-se com água fria, onde a fêmea solta suas larvas microscópicas. Para dar continuidade ao ciclo de vida, elas têm de ser ingeridas por minúsculas criaturas aquáticas chamadas copépodes.

Os cientistas supuseram inicialmente que os cães eram infectados ao beber água contaminada. Mas os casos em humanos e cachorros quase nunca ocorriam nos mesmos vilarejos.

Especialistas suspeitaram, então, que os culpados eram os peixes que comem os copépodes. Os aldeões que limpavam os peixes davam as entranhas aos seus cachorros. O governo pediu aos aldeões que parassem com essa prática, mas as infecções continuaram.

Agora, um novo suspeito apareceu: o sapo. Os girinos comem os copépodes que podem sobreviver em sua carne enquanto eles crescem. Os vermes tendem a ocorrer em grupos que comem sapos, como as crianças que os caçam com estilingues e os cães que acompanham essas crianças.

Sapos pegos em uma rede. Cientistas usarão os sapos para determinar se são eles que estão infectando cães com vermes-da-guiné. Foto: Jane Hahn para The New York Times

Especialistas do Centro Carter mandaram larvas encontradas em cães para testes nos Estados Unidos.

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O centro considera que 60 mil cães em 1,8 mil vilarejos estejam suscetíveis à infecção. A ideia de matar os cães foi rejeitada. As pessoas precisam de seus cachorros para caçar, proteger suas cabanas de ladrões, livrar suas plantações de babuínos e afastar as hienas do gado.

Ao mesmo tempo, o centro tem se frustrado com a demora na erradicação definitiva. E passou a usar a vergonha como tática. As novidades na campanha incluem desenhos animados de uma competição internacional de corrida. Em último, corredores representando o Sudão do Sul e o Mali chegam na frente, enquanto Etiópia e Chade ficam para trás.

Ruiz-Tiben qualificou o presidente do Chade, Idriss Déby, como “passivo” em relação ao esforço.

Mas Philipe Tchindebet Ouakou, coordenador nacional para erradicação do verme-da-guiné no Chade, afirmou que o presidente Déby quer acabar com a praga, mas admitiu que não foi estipulado um prazo para isso. 

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